quarta-feira, 14 de março de 2018

A MEMÓRIA COMO TESTEMUNHO NA OBRA ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS



A MEMÓRIA COMO TESTEMUNHO NA OBRA ANGÚSTIA, DE

GRACILIANO RAMOS 






RAFAEL VESPASIANO FERREIRA DE LIMA
Brasília – DF, dezembro de 2010.



Centro Universitário de Brasília – UniCEUB

Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES
Curso de Letras
    
A MEMÓRIA COMO TESTEMUNHO NA OBRA ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS


Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Licenciatura em Letras pela Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, tendo como Professora-Orientadora Ana Luiza Montalvão Maia. 





SUMÁRIO


Introdução                                                                                                                   7

Capítulo 1: A linguagem narrativa e as relações com a memória                   9

Capítulo 2: Graciliano Ramos e o romance de 30                                             19

Capítulo 3: A análise do romance Angústia de Graciliano Ramos pelo viés do
memorialismo                                                                                                            32

Conclusão                                                                                                                  53 

Referências                                                                                                               55













INTRODUÇÃO

O tema escolhido para a pesquisa trata da categoria do memorialismo como forma de testemunhar os medos do protagonista do romance corpus da pesquisa, Angústia, de Graciliano Ramos. A pesquisa, assim, tem como objetivo principal, evidenciar que o uso do viés do memorialismo na obra corpus, é de relevante importância para revelar a dor do narrador-protagonista, Luís da Silva.
A metodologia utilizada se estrutura em dois momentos: a) o da pesquisa bibliográfica realizada por meio do levantamento e fichamento de livros, artigos, periódicos, etc., que serviram de sustentáculo para conferir o argumento de autoridade para a pesquisa, fontes de críticos literários como Antonio Candido, Fernando Cristóvão Alves, Afrânio Coutinho, Lúcia Helena Carvalho, entre outros; b) o estudo de caso que se refere a uma análise de como as rememorações, realizadas por meio do fluxo de consciência, através da narrativa em primeira pessoa e, constituídas de lembranças e esquecimentos, promovem o testemunho da angústia e dor do narrador-protagonista, Luís da Silva, no romance corpus da pesquisa, Angústia.
A pesquisa divide-se em três capítulos: o primeiro capítulo mostra as relações entre linguagem narrativa e memória; o segundo capítulo trata da 2ª fase do Modernismo Brasileiro, em especial, o romance de 30 e a relação de Graciliano Ramos, autor do corpus, com a temática desenvolvida por essa etapa do movimento modernista; e, no terceiro capítulo, realiza-se a desconstrução da obra Angústia, abordando os aspectos que fizeram o escritor do romance corpus da pesquisa, optar pelo viés do memorialismo para testemunhar a dor/angústia, do protagonista da obra, Luís da Silva.
Fica evidente que o viés do memorialismo é escolhido pelo autor do corpus da pesquisa, Graciliano Ramos, como recurso mais apropriado para testemunhar a dor do protagonista da obra, as angústias de Luís da Silva rememoradas num incessante fluxo de consciência, num processo mnemônico de muita dureza, tensão e densidade
psicológica, característica das obras graciliânicas.






















CAPÍTULO I
A LINGUAGEM NARRATIVA E AS RELAÇÕES COM A MEMÓRIA
Há diversos tipos de narrativas, classificadas de acordo com o meio em que são usados: podem ser de plano verbal, icônico, audiovisual, figurativo etc. Existindo desde sempre na humanidade. Nesta pesquisa considerar-se-á a narrativa de ficção, a obra
Angústia de Graciliano Ramos, “isto é, aquela alçada ao plano literário e que se realiza exclusivamente por meio da palavra.” (ATAÍDE, 1974, p.13)
A linguagem literária é conotativa, permite várias interpretações, em virtude de apresentar um enfoque subjetivo. A literatura é a “arte da linguagem”, por isso como as
emoções e fatos são apresentados importa muito e a memória como recurso da linguagem é sempre relevante para ressaltar fatos, momentos e aspectos da narrativa. Os romances marcados predominantemente pelas evocações do passado são chamados romances memorialísticos. Graciliano Ramos, autor do corpus da pesquisa, é um romancista cuja obra transita entre a ficção e a confissão.
Dos quatro romances iniciais do autor alagoano, os três primeiros são narrados em primeira pessoa: em Caetés (1933), o narrador é João Valério, o romance de estreia de Graciliano Ramos, é segundo Candido (2006a, p.18), “um deliberado preâmbulo; um exercício de técnica literária mediante o qual pode aparelhar-se para os grandes livros posteriores.” Por isso, o tom memorialístico não se faz tão presente, pressupondo uma pasmaceira na vida e no espírito das personagens, inclusive em João Valério. Já neste livro, todos os fatos, cenas e personagens dependem do narrador, pois o autor Graciliano preocupa-se com o caso individual, assim o narrador-protagonista é dominante e impõe sua visão sobre as coisas, fatos e personagens analisadas.
Em seu segundo romance, São Bernardo (1934), o narrador Paulo Honório aparece como uma das personagens mais complexas da obra graciliânica. E para re-construir-se como pessoa, passa a escrever suas memórias e das pessoas que cercaram sua vida. As personagens e as coisas surgem como modalidades dele, como propriedades de Paulo Honório, dada sua personalidade dominadora. Por meio da escrita de suas memórias, Paulo Honório redime-se como ser humano; assim sendo São Bernardo é de um forte teor memorialístico, e já evidencia o autor Graciliano maduro e na plenitude dos recursos literários. (CANDIDO, Op. cit., p. 43)
 O tom memorialístico do escritor alagoano ganha forma e força com São Bernardo e como afirma Candido (Op. cit., p.46):  
(...) se a percepção literária do mundo sensível aparece aqui (São  Bernardo) refinada, é igualmente notável o progresso (de Caétes para aquele) verificado nos mecanismos do monólogo inteiror, gênese dos sentimentos e evocação da experiência vivida (grifos meus)

 No terceiro romance de Graciliano Ramos, com foco narrativo em primeira pessoa, Angústia (1936), corpus da pesquisa, tem-se como protagonista Luís da Silva, um narrador que para Fernando Cristóvão (1986, p.18) “encarna o humilhado procurando desesperadamente o acesso à dignidade.” Por esse sentimento de humilhação, o protagonista é um indivíduo violento, cruel, amargo e profundamente negativista.
O tom memorialístico na obra é evidente, pois Luís da Silva narra as frustrações pessoais, em tom de memória, em quase ininterrupto fluxo de consciência, em um monólogo interior que demostra a angústia do narrador, mas também angustia o leitor.  “Angústia é provavelmente o mais lido e citado, pois a maioria da crítica e dos leitores o considera a sua obra-prima.” (CANDIDO, Op. cit., p.47). Para compreender melhor tal assertiva do crítico Antonio Candido é necessário analisar o caráter memorialístico do corpus da pesquisa (Angústia), com esse intuito, passa-se às seguintes considerações.
Para se entender o tom memorialístico do corpus, precisa-se diferenciar tempo cronológico e tempo psicológico; trabalhar a questão da opção ou pelo foco narrativo em primeira pessoa ou em terceira pessoa; definir o conceito de fluxo de consciência, e melhor aprofundar a noção de memória nas obras narrativas.
A definição de tempo literário parte da conceituação de tempo, que é a velocidade pela qual a narrativa se desenrola. Pode-se ter dois tipos de tempo: a) tempo cronológico ou objetivo; b) tempo psicológico ou interior ou subjetivo. Para Ataíde (Op. cit., p.47), “o tempo cronológico consiste num esforço do homem para opor uma barreira ao tumulto subjetivo, às presentificações da memória, à duração interior que é imprevisível e incontrolável.”
Por isso, o tempo cronológico é objetivo, uma escala rígida e convencional, que existe para controlar as relações humanas diárias. Este tempo exterior é oposto ao tempo interior, subjetivo, o qual é mensurado pela experiência de cada um. Ou seja, varia de indivíduo para indivíduo, é um tempo atemporal.
Segundo Ataíde (Op. cit., p.48), se a sociedade ocidental criou o tempo da pontualidade inglesa, a literatura ocidental está pondo em crise esta mesma noção. A narrativa moderna centra o seu foco no tempo, “o tempo cronológico versus o tempo psicológico é o grande tema das grandes obras modernas.” 
O crítico Fernando Cristóvão cita o teórico A. A. Mendilow que afirma:
Tudo o que se reivindica, e a reivindicação é grande, é que o elemento temporal em ficção é da maior importância, e que em grande parte determina a escolha e o tratamento do assunto por parte do autor, o modo pelo qual este articula e dispõe os elementos de sua narrativa e o modo como usa a linguagem para expressar o seu senso do processo e do significado de viver.” (MENDILOW, apud CRISTÓVÃO, Op. cit., p.80).

Na narrativa há a evolução dos fatos em sucessão contingente, na qual são apresentadas as personagens e acontecimentos do romance. Para Fernando Cristóvão
(Op. cit., p.80) “está nos poderes do narrador manipular” tal sucessão dos fatos. “Pode fazê-lo das mais diversas maneiras”, por supressão das personagens, pela alteração do ritmo e recuperação do passado, antecipação do futuro, aceleração ou retardo dele, mistura de perspectivas.
Essa luta contra o tempo cronológico e a favor de sua substituição por um tempo psicológico ou lógico tem sido, para Fernando Cristóvão (Op. cit., p.81), a tendência dominante do romance, desde o século XVIII aos dias atuais, o estudioso cita os escritores Proust, Dostoiévski, Joyce, Faulkner, dentre outros. 
 Isso é também a tendência de muitos romancistas que iniciam a carreira literária com romances onde domina o tempo cronológico e amadurecem a sua obra, libertandose do tempo cronológico progressivamente, adentrando pelo romance de tempo psicológico. “Assim acontece com Graciliano Ramos, que, do romance de tempo cronológico em que se estreou, rapidamente evoluiu para o romance de tempo psicológico.” (...) “De gradual interiorização (...) ganhou em densidade significativa”
(CRISTÓVÃO, Op. cit., p.81)
A narração meramente decorrida no fluir do tempo cronológico coloca os fatos humanos e os objetos meramente em um nível de tempo de desgaste que não ultrapassa a periferia. Diferente é a narração que valoriza e dá uma contextura psicológica, pois penetra no mais íntimo das realidades. “O tempo passa então a fazer da vida psicológica em mais elevado grau, através da memória que a edifica, não só no tempo, mas com e contra ele.” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.81) (grifos do autor) . 
Mas, o primeiro romance do autor alagoano, Caetés, é essencialmente um romance de tempo cronológico. Em São Bernardo um equilíbrio entre as tendências cronológicas e psicológicas, embora já haja vantagem para as segundas. Vidas Secas e, principalmente, Angústia são romances de tempo psicológico, ainda que em graus diversos.
Ainda segundo Fernando Cristóvão é, porém, em Angústia que o processo do tempo psicológico chega ao ápice. Mesmo não faltando indicações cronológicas destinadas à compreensão do enredo, mas mesmo, sendo úteis não adquirem importância
fundamental. É que o autor não aprendeu a omiti-las e tem receio de que o leitor se perca na apresentação conflituosa dos estados de alma de Luís da Silva.
A personagem Luís da Silva está livre para que seu relato seja francamente de tempo interior “que avança em ondas conduzido pela memória involuntária e entregue a associações dinâmicas” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.100)
Fernando Cristóvão também asservera:
O romance não o é tanto da paixão de Marina e da morte de Julião
Tavares como da agitação tumultosa das humilhações dum Luís da Silva, que se confessa narrando o que motiva o seu estado de alma. Mais do que a história dum crime, Angústia é a história do estado de alma dum humilhado que se liberta. E é na manifestação desse estado de alma, feita através do monólogo interior que Angústia marca o triunfo definitivo na obra de Graciliano, do tempo psicológico sobre o cronológico. (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.100)

E o monólogo é o artifício mais adequado para traduzir o escoamento do tempo interior, já que os nexos entre evocações e associações configurarem-se subjetivamente. Partindo do presente para o passado, num mesmo movimento narrador e leitor têm um igual e simultâneo ritmo no fluir do tempo. Pelo monólogo, a intensidade do tempo da personagem é tão grande como a do tempo do leitor.
No romance Angústia, os monólogos aparecem em grande quantidade, estabelecendo o tempo psicológico por excelência, termo duma evolução “tão timidamente anunciada em Caetés” (CRISTÓVÃO, Op. cit.,  p.101). O caminho foi trilhado por Graciliano Ramos que do romance do tempo cronológico passou ao romance do tempo predominantemente psicológico. O efeito resultante foi o objetivo pretendido pelo autor: “libertar os acontecimentos e personagens da tirania cronológica que impõe um tipo de conhecimento demasiado superficial para ser verdadeiro” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.101).
 Ao deixar de lado a cronologia, é possível ir “fundo” na psicologia humana, onde as relações de causa e efeito não são meramente insinuados pela linearidade do tempo, mas podem ser encontradas na consideração de desejos do inconsciente que interferem no comportamento humano.
A leitura de Angústia é descontínua, em virtude das frequentes paragens e supressões, criando no leitor uma “certa angústia expectante” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.102). O crítico vai além ao afirmar:
O tempo de Graciliano é, cumulativamente, precipitado e lento.(...) É igual ao tempo do homem moderno, jogado entre as acelerações do progresso e as compensações e pausas das suas defesas de ruptura e ócio. Tempo de herói fracassado, uno e múltiplo, que já não olha a sociedade como perfeita, hierarquizada e governada pela autoridade divina que consolide superiormente as instituições humanas estáveis. (...) Para ele o mundo não decorre num tempo constante e sereno. (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.102-103)

Este tempo descontínuo é o das personagens graciliânicas Paulo Honório, Fabiano e Luís da Silva. Esse é o texto de Graciliano Ramos: direto, seco, rápido sem ornamentos inúteis. Um tempo de leitura rápida e segmentável que recupera o leitor com pressa para fora-do-tempo da reflexão, “pois busca um saber não transmitido mas a elaborar pelo narrador, pelas personagens, pelo leitor.” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.103) 
E, para ressaltar, a importância do tempo psicológico na obra Angústia é necessário, reforçar que tal tempo é expresso no foco narrativo em primeira pessoa, com o narradorprotagonista Luís da Silva contando suas frustrações. O foco narrativo em primeira pessoa na obra de Graciliano Ramos é importante pelo que o romancista entende por objetividade e verdade, já que uma das maiores preocupações do autor alagoano “foi a objetividade, na significação e interpretação do real.” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.29)
Procurou a objetividade sempre em seus romances, o real psicológico, e exprime-se tanto nas narrativas em primeira pessoa como na terceira pessoa. Graciliano Ramos não escrevia nada que não fosse adquirido e filtrado por sua experiência, não poderia escrever sobre algo que não tivesse vivenciado. É o caso do objeto de estudo, a obra Angústia, na qual a estrutura acional do enredo se fundamenta nas recordações de infância, que podem elucidar as diversas fases do desenrolar da narrativa. Tal fato é comprovado na obra Cartas (RAMOS, Graciliano. 1992, p.197) em que destaca: “(...) só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.”
É importante destacar o conceito de fluxo de consciência que para Carvalho é “a apresentação idealmente exata, não analisada, o do que se passa na consciência de uma ou mais personagens” (1981, p.51); este recurso literário é de muita utilidade para o transcorrer e a compreensão da narrativa de Graciliano Ramos.  Carvalho prossegue afirmando que o fluxo de consciência corresponde a “estados de consciência pré-verbais” (Op. cit., p.54), apresentados de forma truncada, caótica ou meramente associativa.
Não só isso caracteriza o fluxo de consciência, mas também a natureza do material psicológico exposto na obra. Em Angústia, corpus da pesquisa, o escritor busca apresentar verbalmente as reminicências da infância do narrador Luís da Silva. Para Carvalho (Op. cit., p.61), se até hoje as relações entre pensamento e linguagem não estão perfeitamente explicadas, existindo entre eles uma inter-dependência, “a ficção do tipo fluxo da consciência é perfeitamente justificada”. 
Segundo Graciliano Ramos, liberdade total não existe: ou se está preso à sintaxe ou ao Departamento de Ordem Política. A liberdade adquirida, gradativa e historicamente, pelo romance tornou-o um gênero de caráter flexível, maleável.
A memória é composta de lembranças e esquecimentos é representada pela linguagem. E a linguagem em Graciliano Ramos é forçada a adquirir a contundência dos objetos cortantes, e a tensão em que ela se mantém é o próprio pensamento a se policiar contra os riscos do entorpecimento. Entre a realidade e o artista tem lugar invariavelmente uma áspera convivência, que na verdade é mútua agressão.
Numa compreensão da coerência da memória expressa pela linguagem que se dá de forma inteira na obra de Graciliano o que evidencia a coerência de sua obra, está intimamente estruturada na preocupação do autor na unidade de seus romances.
No caso, de Angústia, corpus da pesquisa, a estratégia desenvolvida por Graciliano é tentar fazer com que a linguagem, mais do que expressar, possa concretizar em si a própria realidade.
Ao usar a memória como recurso na construção de seus romances, Graciliano procura alcançar o máximo de autenticidade entre os espaços de lembranças e esquecimentos, e parece ser o desejo de encontrar um ponto de apoio, uma base sólida de orientação dentro da realidade – sempre enganosa, fugidia e em mutação, tal qual a memória. Mas, apesar de todos os contratempos que a memória suscita, Graciliano busca no memorialismo a base para a reconstituição em seus romances de vivências comoa lembrança de passagens de sua vida. Não é possível deixar de destacar que Graciliano ao enveredar pelo memorialismo, enfatiza o artista às voltas com a problemática entre texto e contexto, de cortar o passo à imaginação, entendida como instrumento inadequado para a sondagem da verdade das coisas.  
 O percurso literário temporal do autor do corpus, é uma “subversão do tempo cronológico” (BAPTISTA, s/d, p.51), pois as narrativas romanescas graciliâncias, quer em primeira pessoa, quer em terceira pessoa, são marcadas de forma singular e particularíssima de “uma concepção temporal subjetiva, onde o tempo e a memória possuem, especialmente, o caráter de duração interior”, assim “resgatam ritmos temporais qualitativos, que desdobram intermitentemente o passado no presente.” (BAPTISTA, Op.
cit., p.51)
As personagens graciliânicas são “desconstruídas e re(construídas)”, num “universo intemporal cujo pólo de prevalência é do pensamento, das ideias, impressões e reelaborações mentais.” (BAPTISTA, Op. cit., p.51), pois a força da ficção de Graciliano reside em grande parte no fato de atingir extraordinária densidade dramática na representação dos problemas modernos, especialmente no que se refere ao conflito dos seres humanos com o seu destino.
A modernidade que tanto se cobra à sociedade brasileira encontra-se emperrada no impasse gerado pelo confronto entre forças contrárias que persistem tencionadas dialeticamente. Sabe-se que Graciliano Ramos foi um dos poucos escritores modernistas a não acreditar no processo de modernização implantado no país a partir dos anos 30.
Por isso, a obra de Graciliano ultrapassa as discussões em torno do “regionalismo” que, em décadas passadas, dominou a crítica literária e que se queria a todo custo impor à obra do escritor. O autor do corpus da pesquisa soube preservar, por meio da memória, a autenticidade da ambientação geográfica e cultural onde se desenvolve o romance, que era o mundo de suas origens e, como dizia, o único sobre o qual poderia falar. Mas nunca perdeu a dimensão universal do drama humano, do sujeito submetido à complexidade dos seus desejos e afetos.
A preocupação do escritor Graciliano em detectar o drama individual sem esquecer o drama do homem universal evidencia o posicionamento do intelectual dos países periféricos (base colonial): em ter acesso aos bens culturais universais e conviver com o atraso local. Por isso, o capítulo 2 tratará dessa dualidade local x universal no escritor
Graciliano Ramos no contexto do “romance de 30”, o que determina a sempre atualidade de sua obra.

CAPÍTULO II
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE DE 30

Para compreender a obra do escritor Graciliano Ramos, faz-se necessário analisar o período literário ao qual o escritor pertence. O autor alagoano encontra-se entre os
“romancistas de 30” do Modernismo brasileiro do século XX. Neste capítulo abordar-se-á o estilo literário de Graciliano Ramos, em três etapas, a saber: primeiramente, será feita uma breve periodização da Literatura Brasileira, ou nas palavras do crítico Antonio
Candido, do sistema literário; depois, será abordada a relação entre Literatura Brasileira, Subdesenvolvimento e Regionalismo e, por último, focar-se-á o contexto histórico e as características estéticas do “Romance de 30” em si, sobretudo a figura do autor do corpus da pesquisa, Graciliano Ramos.
O aspecto mais interessante da literatura nos países da América Latina, para Candido (2006) é a transposição e a adaptação dos padrões estéticos e intelectuais da Europa às condições sociais e físicas do Novo Mundo. Sendo assim, as nossas literaturas “são essencialmente europeias” (...) “tanto mais quanto foram transpostas à América na era do Humanismo” (CANDIDO, Op. cit., p.198). Ou seja, herdamos uma literatura extremamente erudita, cheia de exigências formais e aberta para uma visão realista e ao mesmo tempo alegórica da vida. Contudo, este tipo de literatura foi transposta para terras desconhecidas, habitadas por povos de cor e tradição diferentes (indígenas, no caso do Brasil), aos quais se juntaram povos trazidos da África, o que aumentou a complexidade do panorama. 
As literaturas da América Latina foram obrigadas a imprimir na expressão herdada da Europa certas características, que as tornaram capaz de exprimir também a nova realidade natural, social e humana. Dessa forma, surgiram as literaturas nacionais da América Latina, que foram se tornando variantes diferenciadas das matrizes europeia, chegando até em alguns casos influir nelas.
Percebe-se que no Brasil, mais especificamente,  a literatura foi a expressão da cultura do colonizador, e depois do colono europeizado. Os primeiros livros da Literatura Brasileira promoviam a celebração da Metrópole e do colonizador, louvando as normas da colonização, defendendo e justificando a obra do colonizador. Porém, no século XVIII começam a surgir obras literárias que questionam todo esse poder da Metrópole e do colonizador europeu. Já que a colonização portuguesa ia criando a sua própria contradição, pois as classes dominantes da Colônia começam ter os seus interesses divergindo em relação aos da Metrópole, e isso refletia-se na Literatura.
Portanto, a visão da nova realidade que se oferecia, propunha a abordagem de novos temas, diferentes dos que nutriam a literatura da Metrópole. E a necessidade crescente de usar de maneira diferente as “formas”, adaptando os gêneros às necessidades de expressão dos sentimentos e da realidade local.
O  crítico Antonio Candido desenvolve o conceito de sitema literário”para explicar o exposto acima. A Literatura Brasileira estaria esquematizada em três etapas: 
(1) a era das manifestações literárias, que vai do século XVI ao meio do século XVIII; (2) a era de configuração do sistema literário, do meio do século XVIII à segunda metade do século XIX; (3) a era do sistema literário consolidado, da segunda metade do século XIX aos nossos dias. (CANDIDO, 1999, p.14)

O crítico entende como sistema a articulação entre quatro elementos: autores e obras, por meio de veículos que permitem o seu relacionamento, definindo uma  „vida literária‟; públicos, restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas circulem; tradição, que é o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer, mesmo que seja
para rejeitar.  
Assim, na primeira etapa, que abrange o Quinhetismo, o Barroco e parte do Arcadismo, só pode-se afirmar que existiram manifestações literárias, pois só se tinham autores e obras, faltando público e tradição; a segunda etapa abrange a parte final do Arcadismo e o Romantismo, esta é a fase da configuração do sistema literário, pois têmse autores, obras e um público mais amplo de leitores, faltando a tradição literária, mas esta já a formar-se; a terceira etapa abrange do Realismo até os dias atuais, e é a era do sistema literário consolidado, pois os quatro elementos do sistema consolidam-se, autores, obras, público leitor e tradição, já que no Realismo surgem os primeiros grandes críticos e historiadores literários brasileiros, configurando e sistematizando a tradição literária brasileira. A figura-síntese da consolidação do sistema literário brasileiro, para Antonio Candido, é o escritor Machado de Assis.
Portanto, a Literatura Brasileira foi adquirindo suas peculariedades ao longo do tempo, assumindo uma temática própria, passando a ter suas especificidades, sua cor local, suas características peculiares que a diferenciam das outras e faz dela uma Literatura distinta, refletindo a cor local. Lógico, sem esquecer, que a Literatura Brasileira é uma transposição e adaptação das literaturas europeias, disso não se pode fugir, pois o Brasil foi originalmente colônia, só esse fato já demonstra, nossa dependência no que se refere às origens da Literatura. Consegue-se independência política e literária, mas devese muito às literaturas europeias, isso é justificado ainda pelo fato do Brasil ser um país periférico ou subdesenvolvido, tema que será abordado a seguir.
Até a década de 1930 predominava no Brasil a noção de „país novo‟ “que ainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro.” Sem grandes mudanças no cenário mundial e na distância que separa o Brasil dos países ricos ou desenvolvidos, o que predomina agora é a noção de „país subdesenvolvido‟. Conforme a primeira perspectiva salientava-se a grandeza ainda não
realizada, conforme a segunda, destaca-se a pobreza atual.
A partir dessas perspectivas, pode-se compreender melhor certos aspectos da criação literária na América Latina, em especial, no Brasil; ajudando também a  entender o “Romance de 30”, ao qual pertence o autor do corpus da pesquisa, Graciliano Ramos.
Com efeito, a ideia de „país novo‟ produz na literatura, atitudes fundamentais, como o interesse pelo exótico, derivado pela surpresa ante a grandiosidade física do Novo Mundo e surgindo também a ideia de esperança quanto às possibilidades. Tal ideia via a América como um lugar privilegiado, o que foi expresso em projeções utópicas que atuaram na fisonomia da conquista e da colonização.
Mais adiante, quando as contradições da colonização levaram as classes dominantes das colônias à separação política em relação às metrópoles, surge a ideia complementar de que a “América tinha sido predestinada a ser a pátria da liberdade, e assim consumar os destinos do homem do Ocidente.” (CANDIDO, Op. cit., p.170). Esse estado eufórico foi herdado pelos intelectuais latino-americanos, que o transformaram em instrumentos de afirmação nacional, a literatura se fez linguagem de celebração, favorecida pelo Romantismo, que transformou o exotismo em estado de alma, com o intuito de afirmar ou definir uma identidade nacional de países recém-emancipados politicamente das metrópoles europeias. A ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e dela extraía sua justificativa. 
Porém, as visões desalentadas dependiam da mesma ordem de associações, como se a desorganização das instituições constituíssem um paradoxo inconcebível em face das grandezas naturais. A visão que resulta, então, é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro, restando a confiança que a remoção do imperialismo traria, por si só, o progresso. Mas, em geral, não se trata mais de um ponto de vista passivo. Surgindo daí uma disposição para o combate, que se alastra pelo continente, tornando a ideia de subdesenvolvimento uma força propulsora, que dá novo cunho ao empenho político dos intelectuais latino-americanos.
“A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista (...)” (CANDIDO, Op. cit.,
p.171), esta abandona a amenidade e o pitoresco, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalherismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico. E aqui “entra em cena” o autor do corpus da
pesquisa, Graciliano Ramos.
O Modernismo é de fundamental importância para a tomada de consciência do subdesenvolvimento pela Literatura Brasileira, pois sabendo que nossas literaturas (latinoamericanas e como também as da América do Norte) são basicamente ramificações das metropolitanas, ressaltando que tal fato em nada diminui o valor dos modernistas, mas permite interpretar o Modernismo como episódio historicamente importante do processo de fecundação criadora da dependência – modo peculiar dos nossos países serem originais.” (CANDIDO, Op. cit., p.184)
No caso brasileiro, os criadores do nosso Modernismo derivam em grande parte das vanguardas europeia. Elas marcaram uma libertação extraordinária dos meios expressivos e nos prepararam para alterar sensivelmente o tratamento dos temas; as vanguardas foram para nós todos, fatores de autonomia e auto-afirmação. 
A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920; da intensa consciência estético-social dos anos 30 e 40; da crise de desenvolvimeto econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes, começa-se a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural. Encara-se, assim, com maior objetividade e serenidade o problema das influências, elas passam a ser vistas como vinculação normal no plano da cultura.
“Isto não apenas dará aos escritores da América Latina a consciência da sua unidade na diversidade” (CANDIDO, Op. cit., p.186), mas favorecerá a produção de obras de teor maduro e original, que serão lentamente assimiladas também pelos países metropolitanos e imperialistas.
Ao se retomar a questão da ficção regionalista e dado o subdesenvolvimento da América Latina, o regionalismo foi e ainda é força estimulante na literatura. Pode-se, segundo Candido, distinguir-se três momentos ou fases do regionalismo na Literatura Brasileira. O primeiro remota ao Romantismo, à fase de consicência de „país novo‟, correspondente à situação de atraso; o regionalismo, nesse momento, é sobretudo pitoresco decorativo e funciona como descoberta, reconhecimento da realidade do país e sua incorporação ao temário da literatura. O segundo momento da ficção regionalista é o da pré-consciência do subdesenvolvimento, funcionando como consciência da crise, motivando o documentário e, com o sentimento de urgência, o empenho político.
Em plena fase de pré-consciência do subdesenvolvimento encontra-se Graciliano Ramos, autor do corpus da pesquisa, alta expressão  dessa fase (também denominada “Romance de 30”), pois o escritor alagoano não se permite a idealizações ou ao pitoresco, prefera mostrar as agruras e angústias do homem de forma universal, é o caso de Luís da Silva, o protagonista de Angústia, corpus da pesquisa. Graciliano Ramos faz isso sem deixar de ambientar suas obras na região nordestina, mostrando suas características, só que não de forma pitoresca, mas sim de forma natural e indissociável do drama humano, seja na região nordestina sertaneja, é o caso de Vidas Secas, seja nas áreas urbanas do nordeste, é o caso do corpus da pesquisa, já que Angústia é um romance ambientado na cidade de Maceió, capital alagoana.
O regionalismo, portanto, foi uma etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo o romance e o conto, focalizar a realidade local. Mas de um certo ângulo talvez não se possa dizer que acabou. “A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como objeto vivo, a despeito da dimensão urbana ser cada vez mais atuante.” (CANDIDO, Op. cit., p.192). Por isso é preciso redefinir o problema. Verifica-se, na fase de consciência eufórica de „país novo‟, caracterizada pela ideia de atraso, o regionalismo pitoresco. Este regionalismo está há muito superado ou rejeitado para o nível da subliteratura. O regionalismo pitoresco ocorreu principalmente no século XIX, surgindo no Romantismo, e durou até o início do século XX, com o sertanejismo prémodernista.
Na fase de pré-consciência do subdesenvolvimento, pelos anos de 1930 e 1940, teve-se o regionalismo problemático, que se chamou de „romance social‟, „romance do nordeste‟, „Romance de 30‟ ou „neo-realismo‟, várias são as denominações para o mesmo fenômeno: o regionalismo precursor da consciência de subdesenvolvimento.
Entre os que naquele momento propuseram com vigor analítico e algumas vezes forma artística de boa qualidade a desmistificação da realidade americana, estão: Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, entre outros. “O que os caracteriza, todavia, é a superação do otimismo patriótico e a adoção de um tipo de pessimismo (...)” (CANDIDO, Op. cit., p.193), que focaliza o homem pobre como elemento refratário ao progresso, este homem volta-se contra as classes dominates e  vê na sua degradação uma consequência da espoliação econômica. 
Para Candido, a superação desta modalidade de regionalismo e o ataque que vêm sofrendo por parte da crítica são demonstrações de amadurecimento, por isso muitos autores rejeitariam o qualificativo de regionalistas, que de fato não tem mais sentido. 
O que se vê agora é uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, que leva os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade. Nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior. Isto leva o crítico Antonio Candido a propor a distinção de uma terceira fase, denominada de super-regionalista. Este é o terceiro momento da ficção regionalista a que me referi anteriormente.
 A tendência super-regionalista corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento, deste super-regionalismo é tributária, no Brasil, a obra revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que se pode chamar a “universalidade da região” (CANDIDO, Op. cit., p.195). Só que essa tendência superregionalista já fora esboçada no momento anterior, no regionalismo problemático, por Graciliano Ramos, dado o já exposto, pois o autor alagoano já tem como recurso narrativo o monólogo interior, por exemplo. E trabalha a universalidade do drama humano, caso do romance Angústia, corpus da pesquisa. Sendo assim, Graciliano Ramos é também um precursor do super-regionalismo.
Trabalhar-se-á a partir de agora, as características mais importantes do “regionalismo problemático” ou “romance de 30”. Historicamente, o ano de 1926 é de fundamental importância para a futura eclosão do regionalismo de 30, pois naquele ano é realizado no Recife, o Congresso Brasileiro de Regionalismo, e que foi o primeiro no gênero, não só no Brasil como na América. O movimento lança manifesto e sugere todo um trabalho em prol do espírito de região e tradição. Comanda o empreendimento Gilberto Freyre que resume o movimento:
Resistindo à ideia de que o progresso material e técnico deve ser tomado como a medida da grandeza do Brasil, os regionalistas brasileiros viam no amor à província, à região, ao município, à cidade ou à aldeia nativa, condição básica para obras honestas, autênticas, genuinamente criadoras e não um fim em si mesmo. (FREYRE, apud COUTINHO, 2001, vol. V, p.32)
 
É importante ressaltar ainda que a ficção brasileira é oriunda do Romantismo do século XIX. Ela atingiu um grau de maturidade com Machado de Assis, no Realismo. A partir daí, duas linhas formam-se, correndo em paralelo, até os dias atuais. Segundo Afrânio Coutinho (Op. cit., p.264), exitem duas tradições bem nítidas na ficção brasileira.
“Em ambas, a preocupação dominante é o homem.” (COUTINHO, Op. cit., p.264). De um lado, o homem em relação com o meio em que se situa: é a corrente regionalista ou regional, “(...) na qual, em sua maioria, o homem é visto em conflito ou tragado pela terra e seus elementos, uma terra hostil, violenta, superior às suas forças.” (COUTINHO, Op. cit., p. 264). Esse meio tanto pode ser as áreas rurais, como as cidades, grandes centros urbanos, zonas suburbanas ou pequenos aglomerados urbanos. “Ambas ressaltando a pequenez do homem em relação aos problemas que o ambiente lhe opõe.” (COUTINHO,
Op. cit. , p.264).
Do outro lado, o homem diante de si mesmo e dos outros homens, constituindo a corrente psicológica e de análise de costumes, preocupada com os dramas de consciência, indagações sobre os atos e suas motivações, em busca da visão da personalidade e da vida humana.
Essas duas linhas correm paralelas, mas também se misturam e confundem-se em um mesmo autor e/ou em uma mesma obra, aperfeiçoando os seus recursos expressivos. Não há que encarar, portanto, as duas correntes como isoladas. Casos existem de escritores que aliam a análise psicológica e de costumes ao enquadramento regional, como é o caso do escritor do corpus da pesquisa; ou o documentário urbano e social à análise psicológica, como no caso ainda de Graciliano Ramos e o romance Angústia, corpus da pesquisa. Graciliano Ramos é, assim, um caso particular, pois é regionalista, mas também tem contato íntimo com a corrente psicológica. O autor transita entre as duas correntes e as mescla habilmente, dado o seu domínio da linguagem narrativa. 
Para Afrânio Coutinho (2001, Op. cit., p.272), a temática do “Romance de 30”, configura-se e sistematiza-se na base dos cenários e dos costumes, sem todavia obscurecer o papel da imaginação, das leis dos gêneros, e sem esquecer a linguagem, que é progressivamente submetida „à força expressional da fala‟. A matéria ficcional é regional, pois nasce à sombra da oralidade, assim, a ficção obedece a determinantes regionais. Varia a matéria ficcional de autor para autor, mas só em consequência do ambiente que é diferente.
Há, dessa forma, “(...) uma evolução coerente da ficção brasileira desde o início no sentido da brasilidade, pela absorção dos elementos ficcionais locais.” (COUTINHO, Op. cit., p.272). O crítico Afrânio Coutinho prossegue na mesma página: “(...) E mesmo quando o interesse é pela análise do caráter, é em função do ambiente social.” Nesse aspecto, Graciliano Ramos, autor do corpus da pesquisa, é um exemplo evidente, pois a matéria ficcional graciliânica adquire dimensão em profundidade (sondagem psicológica), como é verificado no corpus da pesquisa, o romance Angústia.
O Modernismo Brasileiro tem sua primeira fase, de 1922 a 1930, na qual predominou a poesia. Em 1928, porém, surgiram duas obras capitais, que marcam o início da segunda fase, durante a qual sobretudo domina a ficção: A Bagaceira, de José Américo de Almeida, e Macunaíma, de Mário de Andrade. O experimetalismo da primeira fase dá lugar, na segunda, a uma explosão novelística, nas duas direções tradiconais da ficção brasileira: a regionalista e a psicológica e de costumes, ambas marcadas por um cunho de brasilidade.
A publicação de A Bagaceira é o primeiro sinal de um vasto movimento ficcionista, com base no ambiente sócio-geográfico do Nordeste. E o início do chamado „ciclo do Nordeste‟. Assim sendo Afrânio Coutinho afirma:
A fórmula era buscar no ambiente social, cultural e geográfico os elementos temáticos, os tipos de problemas, os episódios, que seriam transformados em matéria de ficção. A técnica era realista, objetiva, os escritores buscando valer-se de uma coleta de material in loco, à luz da história social ou da observação de campo, tornando os seus romances verdadeiros documentários ou painéis descritivos da „situação‟ histórico-social. (COUTINHO, Op. cit., p.278)

E num momento de intensa propaganda de reforma social e mesmo de revolução, como a década de 30, os livros dessa fase constituíram-se em uma verdadeira literatura engagée, de participação política, no sentido de mostrar as mazelas do estado vigente como premissa à necessária transformação revolucionária. Muitos desses autores tornaram-se até militantes políticos, vindo a constituir uma verdadeira literatura de esquerda. Caso do autor do corpus da pesquisa, Graciliano Ramos era comunista declarado e acreditava que o país só alcançaria uma situação de melhor qualidade de vida e de igualdade social, por meio da revolução.
Importante fazer algumas considerações a respeito do contexto histórico do
“Romance de 30”. A Guerra Mundial de 1914 marcou o fim do colonialismo clássico europeu. Os velhos impérios ruíam e novas potências surgiam no cenário histórico da era industrial. O Brasil, uma das principais nações de um continente semi-colonizado, complemento dos impérios europeus, agonizava. O antigo sistema exportador de matérias-primas alimentícias e o importador de manufaturados esgotara suas possibilidades. A imigração, a industrialização, a urbanização daí resultante, a agitação político militar, a crise econômica, demonstrava que o velho sistema ruía. Uma estrutura mais complexa – gerada pela necessidade de substituir  as importações – própria dos subsistemas periféricos da nova fase da era industrial/capitalista, o substituiria. O engenho era substituído pelas usinas. O café perdia importância. São alguns exemplos de tais mudanças.
Então parece claro: o “Romance de 30” é integrante, produto e reflexo dos primórdios do Brasil moderno, que se superpunha ao Brasil arcaico/agrário da costa e de suas imediações. E „moderno‟ quer dizer marcado pelas estruturas urbano-industriais de um capitalismo cujos centros situavam-se e situam-se no exterior. Nesta fase dos primórdios, as elites dissidentes modernizadoras e os grupos a elas ligados descobriram, de repente, o Brasil. Ou seja, os romancistas de 30 chamaram a atenção do povo brasileiro, para as coisas do Brasil. Com a decadência do colonialismo europeu, os escritores passaram a ressaltar, no Romance de 30, as novas condições socioeconômicas do Brasil. O Romance de 30 era, enfim, ao mesmo tempo, o retrato do Brasil agrário/arcaico, mas também sem perder de vista o aspecto moderno do momento.
A obra literária de Graciliano Ramos focaliza as questões sociais, principalmente as do nordeste brasileiro, mas analisa psicologicamente as personagens, mostrando suas angústias e dramas humanos individuais, mas que são também do homem universal, como forma de testemunho. É o caso do romance Angústia, corpus da pesquisa, que será desconstruído no capítulo seguinte sob esse viés, a saber: a memória  como forma de testemunho do drama humano. Um drama de sempre.









CAPÍTULO III
A ANÁLISE DO ROMANCE ANGÚSTIA DE GRACILIANO RAMOS
PELO VIÉS DO MEMORIALISMO

O problema que originou a pesquisa trata da relação da memória como forma de testemunho. A memória aparece fragmentada na obra corpus da pesquisa, Angústia de Graciliano Ramos. A fragmentação decorre do próprio processo memorialístico que se apresenta entre lembranças e esquecimentos. 
Dentre as lembranças a serem destacadas na obra Angústia é possível agrupá-las em três momentos que subsediam-na como testemunho: a) a infância de Luís da Silva, narrador-protagonista do romance; b) o interior de Alagoas, região de origem de Luís da Silva e, c) a tradição familiar nordestina, que marcou a formação da personalidade do protagonista. Esses três momentos são rememorados pelo narrador no decorrer da obra e constituem o sustentáculo que alicerçam o processo neurótico de angústia vivida pelo protagonista. 
 A partir de agora, dividir-se-á o presente capítulo em dois momentos, a saber: no primeiro será feita uma breve síntese do enredo da obra corpus da pesquisa; e, no segundo momento, serão apresentados fragmentados de Angústia para evidenciar o forte viés memorialístico da obra e o caráter testemunhal da mesma. Será evidenciado que o assassinato cometido por Luís da Silva, cujo o objeto é Julião Tavares, não é motivado apenas por ciúmes, mas, principalmente, pela sua angústia oriunda daqueles três blocos de rememorações (infância, interior e tradição familiar nordestina). Ou seja, a traição da sua noiva, Marina, com Julião Tavares, é apenas o estopim para o crime, porém este é cometido mais pela angústia e traumas de Luís da Silva, originários desde os tempos de infância, aflorada com a traição de Marina, assim as lembranças/memórias desse período vêm à tona, testemunhando e justificando o seu crime.
             1.        Síntese do enredo
Luís da Silva, narrador-protagonista de Angústia, é um ser frustrado, violento, cruel, que traz em si reservas consideráveis de amargura, pessimismo e negação. “(...)Nele, há depravação dos valores, sentimento de abjeção ante o qual tudo se colore de tonalidade corrupta e opressiva” (CANDIDO, 2006, p.48). Sendo assim, Luís da Silva não tem nenhuma auto-estima, falta-lhe a confiança necessária para viver. Desta maneira, a vida torna-se pesadelo sem saída, onde os delírios norteiam e suprimem a distinção do real e do fantástico.
 “(...) Luís fixara residência na capital do estado natal, Maceió. Era funcionário público e, nas horas vagas e noturnas, jornalista e escritor” (SANTIAGO, IN: RAMOS, Graciliano. Angústia, 63 ed., 2008, p.287). Luís conhece e apaixona-se por Marina, mas o relacionamento amoroso não caminha para o final feliz. Pelo contrário, conduziu o apaixonado ao ciúme da amada e ao ódio do rival. Enforca Julião Tavares, jovem e arrogante milionário, conhecido estuprador de mocinhas pobres e ambiciosas. Luís faz justiça com as próprias mãos.
Luís da Silva após cometer o crime, passa por um estado febril e nervoso. Recuperado dos delírios, o protagonista procura, através das memórias dos acontecimentos, esclarecer e testemunhar o motivo (real) do ato criminoso. O testemunho para Luís da Silva é fundamental, pois esse recurso possibilita à personagem rememorar os fatos e, assim, entender o ocorrido. A memória com suas lembranças e esquecimentos é o meio usado para testemunhar sua dor, angústia.
Nesse processo memorialístico, o narrador-protagonista procura exteriorizar as suas fragilidades, medos, numa espécie de romance confessional do seu crime: o testemunho mnemônico do assassinato de Julião Tavares, porém é mais do que isso, é o testemunho da dor/angústia de uma pessoa marcada desde a infância pelo sofrimento: o crime é apenas o ápice dessa angústia. 
Luís da Silva, após o crime, sente-se ainda mais sujo física e moralmente do que antes e este sentimento de abjeção volta-se sobre ele próprio. Acuado por delírios apavorantes, sente necessidade de compartilhar a experiência solitária e infeliz. Começa, assim, a escrever e resumir  todas as reminiscências que vêm à tona de sua vida, desde a infância até o assassinato de Julião Tavares, proferindo “(...) sentença judicial autopunitiva, anterior à justiça dos homens” (SANTIAGO, in: Angústia, 63 ed., 2008, p.288)
             2.        Análise pelo viés memorialístico
A personagem Luís da Silva busca refúgio no passado, para fugir do presente e, no passado encontrar justificativa do ato fatal. Mas, como encontrá-la, se ele está preso pelas convenções sociais, pelo convívio com as outras pessoas? Possivelmente, se tivesse ficado no interior de Alagoas, na província quieta e distante, nada lhe teria acontecido. Agora, onde encontrar a paz e a calma? O passado, ao mesmo tempo refúgio e suplício, é a primeira força motriz no espírito de Luís da Silva. Pesam sobre si tão consideráveis estigmas do passado, em especial da infância, que o narrador-personagem procura nela origens da motivação para o crime e, à medida que caminha no tempo, percebe a marca de um comportamento, sempre intermitente que o lança na fatalidade dolorosa. 

A causa da angústia presente de Luís da Silva é, justamente, a sua infância. As memórias, as reminiscências latentes da infância são locus de obsessão, para justificar o assassinato de Julião Tavares. O assassínio de Julião é o emergir de um inconsciente deformado constituído na infância angustiante de Luís da Silva. Sendo assim, a causa (infância) e o efeito (crime) da angústia estão ligados indissoluvelmente pelas memórias da infância. Luís da Silva procura então libertar-se da angústia presentemente vivida, por meio do testemunho da sua infância também dolorosa, porém é em vão, pois o protagonista não percebe que remontar às origens da angústia, não é, a solução para libertar-se da dor/angústia vivida até o presente momento da enunciação. Não há catarse para as sombras que assaltam Luís da Silva.
Luís da Silva se afunda, portanto, num lodaçal de dúvidas e inquietações, de onde procura sair depois, através de outra via, a derradeira: o crime, que será aceito como único caminho para a libertação. 

As lembranças de Luís da Silva da sua infância servem também para ressaltar a decadência da família rural. Ela é apresentada por recordações de infância, evocadas inesperadamente no corpo da narrativa, explicando ou justificando determinando comportamento ou ação de Luís da Silva (em especial o crime cometido por ele). Essas recordações estão centradas invariavelmente nos mesmos fatos, que perseguem a mente da personagem, motivando-a a agir por impulsos mórbidos. Uma infância cheia de traumas, marcada pela solidão, e uma juventude sofrida, explicam a agressividade de
Luís da Silva, para com as pessoas que o cercam e que ele destrói, destruindo-se também. Quando garoto testemunhou a decadência moral e financeira de sua família, o que lhe traumatizou, deformando sua personalidade e a forma de apreender o mundo.
Assim, a estruturação acional do enredo se fundamenta nas memórias de infância, que elucidam as diversas facetas do desenrolar da trama e os aspectos da psiquê de Luís da Silva, da mesma forma que os traumas infantis explicam muitas atitudes do comportamento do homem adulto. 
Luís da Silva, embora covarde, é um indivíduo prediposto ao crime por razões perfeitamente compreensíveis, localizadas em seu pequeno universo de criança, cujas lembranças mostra a chave de sua agressividade contida, e finalmente liberada em parte, no assassinato de Julião Tavares. Reconhece em si a influência da figura paterna, cuja morte não conseguiu chorar:
(...) Quem me acordou foi Rosenda, que me trazia uma xícara de café.
- Muito obrigado, Rosenda.
E comecei a soluçar como um desgraçado.
Desde esse dia tenho recebido muito coice. Também me apareceram alguns sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que me despertava.
- Obrigado, Rosenda.
Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos. (RAMOS, Graciliano. Angústia. 63 ed., 2008, p.13)

Herdou o gosto da leitura do pai, que o levou à profissão de jornalista:
(...) Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno (...) (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.13)

A influência é negativa, a ponto de as lembranças guardadas do pai serem associadas à ideia de morte: e é a morte dele que lhe ficou profundamente gravada, principalmente a imagem dos pés: “(...) sujos, com tendões da grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas. Eram magros, ossudos, enormes”. (RAMOS, Graciliano.
Op. cit, .p.21)
Esta imagem volta ainda em duas situações: quando acompanha Marina, voltando da casa da parteira que fez o aborto do filho de Julião Tavares; impressiona-se com a palidez mortal da ex-noiva, e em seu cerébro cinco mortes se sobrepõem: a do pai – que se deu num passado remoto, sem sensibilizá-lo, a do filho de Marina e de Julião – que acaba de acontecer, trazendo-lhe ódio e desejos de vingança, a do rival – que acontecerá, de acordo com uma intenção latente, a de Marina – que poderia ter acontecido, satisfazendo-o; a de Cirilo de Engrácia que acontecera num passado próximo, sensibilizando-o pela semelhança de contextos:
Marina estava como uma defunta em pé. Pensei em Cirilo de Engrácia, visto dias antes em fotografia – um cangaceiro morto, amarrado em uma árvore. Parecia vivo e era medonho. O que tinha de morto eram os pés, suspensos, com os dedos quase tocando o chão. Os pés de Camilo Pereira da Silva, ossudos, magros, eram assim desgovernados. Os de Marina estavam metidos na areia. E Marina parecia morta. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.217)

A outra situação se dá no delírio pós-criminal, quando todas as lembranças, até então esparsas, se precipitam, fechando-se o romance: “Os pés de Camilo Pereira da
Silva, escuros, ossudos, saíam por uma das pontas do marquesão, medonhos”. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.277)
Luís da Silva não evoca nenhum fato agradável de relacionamento com o pai. Sobre suas memórias paira uma sombra fúnebre e até mesmo a impressão de que Camilo desejou matá-lo, nas aulas de natação, o que lhe suscita a vontade de afogar Marina:
(...) li a história de um pintor e de um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da Pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a cara de Camilo Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.18)

A memória do avô paterno se manifesta em dois níveis: o do poderoso e valente justiceiro, líder do povo da vila que o acompanha à cadeia, para soltar, contra a lei, um cangaceiro, o do polígamo simpático e honesto, que prestava assistência a suas amantes negras durante o parto, mesmo quando o filho não era dele. Este nível corresponde ao dos fatos que a criança não chegou a testemunhar, tendo-os escutado de terceiros. O outro se relaciona aos fatos que Luís da Silva presenciou e que giram em torno da caduquice de Trajano. O mais significativo deles é o da cascavel que se enrola em seu pescoço, prestes a enforcá-lo, enquanto o velho gritava tira... tira... tira... Esta imagem é da maior relevância no planejamento e execução do crime. Veja-se, por exemplo, uma de suas aparições:
As cascavéis torciam-se por ali. Uma delas enroscou-se no pescoço de Trajano, que dormia no banco do alpendre. Trajano acordou, mas não acordou inteiramente, porque estava caduco. Levantou-se tropeçando, gritando, e sapateou desengonçado como um doente de coréia. Uma alpercata saltou-lhe do pé. E ele, arrepiado, metia os dedos entre os aneis do colar vivo:
- Tira, tira, tira. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.176)

Nas memórias da meninice de Luís da Silva, as cobras e a sua simbologia em diversas situações ocupam lugar de destaque: tomar banho com elas no poço da Pedra, pois dentro dágua eram inofensivas; admira o assassino Chico Cobra, que não puderam prender porque se protegeu, cercando-se  de serpentes; assistia, na vila, à chegada de presos amarrados em cordas; horroriza-se com a figura de seu Evaristo, enforcado numa corda fina, que se torcia e destorcia; compara Amaro Vaqueiro com o Sol, quando prendia as novilhas com uma corda, cena que o angustiava e que pretendia ver terminada logo.
Quando Luís da Silva surpreende Julião Tavares com olhos gulosos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, a aversão, aparentemente gratuita que lhe inspira o negociante, corporifica-se em desejo violento de destruição. Coibido, contudo, pelas exigências morais da realidade, o desejo sufocado se transforma em inquietação angustiante.
Insastisfeito, o desejo busca forma de representação, deslocando-se para uma cena antiga da infância, vivida na fazenda do avô: “As cobras arrastavam-se no pátio. Eu juntava punhados de seixos miúdos que atirava nelas até matá-las” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.93). O elemento cobra solicita, então, no jogo das associações, outra cena infantil, que se oferece no discurso como micronarrativa: “Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. (...) A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra batida e gritava: „Tira, tira, tira‟” (RAMOS, Graciliano. Op. cit,  p.93)
Através da conexão entre a brincadeira infantil, matar cobras, e o episódio tragicômico, cobra enrolada no pescoço do velho, vai-se esboçando pela primeira vez a figuração plástica de uma cena de enforcamento, projeção do desejo inconsciente de agressão, que se deixa ler agora no texto manifesto: “Desejei atirar todos aqueles paralelepípedos em cima de Julião Tavares” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.93)
Se a pequena história do avô já esboçava a cena desejada, a referência ao caso popular, do “sujeito que namorou a noiva de outro”, vem acrescentar precisão ao quadro, traduzindo o destino inevitável que merecem aqueles que desafiam os sentimentos de honra do homem sertanejo (tradição familiar nordestina). E não são raros os casos de cruel vingança por honra ofendida, principalmente quando o motivo da ofensa é mulher.
Um salto leva a uma terceira projeção especular do desejo de morte, com a história do “moleque da bagaceira”. Explicitação fantástica do desejo de destruição cruel, esse conto sensacional, como o considera o sujeito-narrador, surge no enunciado por doação de seu Ramalho, que, relatando-o a Luís da Silva, o oferece como um objeto mágico, através do qual pode o sujeito dar vazão aos instintos destruidores, deslocando-os, em transfarência, para a encenação representativa da tortura e punição do infrator, uma história de sexo, desonra e vingança, assim narrada:
Um moleque da bagaceira tinha arrancado os tampos da filha do senhor de engenho. Sabendo da patifaria, o senhor de engenho mandara amarrar o cabra e à boca da noite começara a furá-lo devagar, com ponta de faca. De madrugada o paciente ainda bulia, mas todo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e meteram-lhe pela garganta a punhal. Em seguida tiraram-lhe os beiços, porque vinha amanhecendo e era impossível continuar a tortura (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.133)

Na verdade, o singular interesse dessa narrativa reside na complexa rede de significantes que tece o seu corpo textual. Assim, a violação sexual, se enlaça à violação da hierarquia social (moleque da bagaceira x filha de senhor de engenho). Pois a infração maior, que provoca tão cruel punição, é a violação da hierarquia social: o moleque se torna criminoso porque tansgride os limites sociais que o separam do senhor de engenho; fosse o senhor de engenho a violentar uma negra dos terreiros, como fazia o velho Trajano, e nada aconteceria. Como, da mesma forma, na ação nuclear, nada acontece a Julião Tavares (filho de Tavares e Cia.) por abusar de Marina (filha de operário), o que desperta em Luís da Silva, entre múltiplos sentimentos, o desejo de justiça: bem aventurados os que têm sede de justiça – repetirá ele muitas vezes ao ver Marina
ultrajada.
Merecem ainda ser notados o gesto cultural de amarrar o infrator, revelando a presença implícita da corda, e a satisfação que o sujeito obtêm na contemplação imaginária da tortura lenta.
O caso do moleque da bagaceira afigura-se, assim, como explicitação máxima do desejo inconsciente, que agora exorbita em representação alucinada, esgarçando a fronteira entre o real e o imaginário. Contrabandeando o desejo censurado, o inconsciente faz este desejo exteriorizar-se através de um discurso estranho, paranoico, em que dados da ficção se mesclam a objetos reais, deformando-os e deformando-se num todo fantasmal:
(...) eu ia pouco a pouco distiguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguinchavam sangue (...) A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.135-136)

O sangue da cena alucinada derrama-se pelo discurso, encarnando-o: “Quando ele [ seu Ramalho] desceu a calçada, estremeci: pareceu-me que tinha sujado os sapatos de sangue” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.136). Chega até mesmo a ganhar odor real, deslocado agora para a figura de Antônia: “Antônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passou bamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um cheiro forte de sangue. Provavelmente estava menstruada e não se lavava.” (RAMOS, Graciliano. Op.
cit., p.136)
Reitera-se outras vezes no romance a cor vermelha, associando-se essa coloração a uma imagem antiga, à nódoa vermelha que cobria o corpo morto do pai. Neste traço, reside, a razão essencial da resistência que o sujeito manifesta pela morte com sangue. Resistência inquietante, porque o sangue constitui uma inscrição penosa no inconsciente, por causa de sua associação com a morte do pai, intimamente desejada. E é por isso, que rejeita a morte violenta, com derramamento de sangue.
Com certeza, será por temor a essa verdade que, finalmente, quando se entrelaçam, ao nível do discurso, a representação do conto de seu Ramalho e a figura verdadeiramente motivadora do desejo destruidor (Tavares), a imagem do moleque vai embranquecendo, as feridas secando, metamorfoseando-se na imagem de um homem com um pedaço de corda no pescoço:
O homem tinha os olhos esbugalhados e estrebuchava desesperadamente. Um pedaço de corda amarrado no pescoço entrava-lhe na carne branca, e duas mãos repuxavam as extremidades da corda, que parecia quebrada. Só havia as pontas, que as mãos seguravam: o meio tinha desaparecido, mergulhado na gordura balofa como toicinho (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.137)

A morte com sangue desloca-se, assim, para a representação da morte por asfixia, que o sujeito vive na imaginação como real e que se encontra igualmente ligada na memória a uma cena infantil de que participa a figura paterna, a cena do poço.
Ao receber de seu Ivo o rolo de corda, Luís da Silva vê-se tomado de estranha inquietação. A simples possibilidade de nomear o objeto o faz tremer:
Evitava dizer o nome da coisa que ali estava em cima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-me que, se pronunciasse o nome, uma parte das minhas preocupações se revelaria. Enquanto estivera dobrada, não tinha semelhança com o objeto que me perseguia. Era um rolo pequeno, inofensivo. Logo que se desenroscara, dera-me um choque violento, fizera-me recuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão de que aquilo me ia amarrar ou morder (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.178)

Porque havia se convencido da necessidade de Julião Tavares ser eliminado – Era evidente que Julião Tavares devia morrer – a presença da corda constitui por si mesma a materialização daquele desejo. A sua inquietação aumenta com a conscientização do ato decisivo, o que o impelirá para a ação consumadora do crime, em movimento
imperioso e irreversível.
Antes de receber a corda, o desejo de matar Julião Tavares só se manifestava através de representações: cenas de tortura, imagens de defuntos antigos, casos de vingança, enfim, experiências penosas revivescidas pelo sujeito, as quais, exteriorizam-se de forma distorcida e deformada. Por efeito da doação, a corda configura-se, na sua realidade palpável, como o elemento essencial que faltava para compor o quadro do assassinato preconcebido. Além do mais, segundo o código cultural, ela se conota de características demoníacas registrado pela sabedoria popular que Luís da Silva guardou com a voz de Rosenda: “Rosenda me disse que no momento em que um cristão bota o laço no pescoço o diabo monta nos ombros dele” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.188)
Entretanto, a convicção de que aquele seria o instrumento do assassinato não se dá assim clara e imediatamente. Luís da Silva, que recua diante do objeto ameaçador, vê-se despertado para uma série de memórias em que corda aparece explicitada ou deslocada para representações similares como a sua variante cobra. 
Na história de Chico Cobra, corda aparece sob a representação metafórica cobra, que aqui sugere especificamente instrumento de defesa, com o qual o criminoso se protege da perseguição policial: “Quando Chico Cobra matou um homem na feira, entrou na mata, fez um rancho de palha e cercou-se de surucucus e outros viventes semelhantes. Todas as diligências da polícia para prendê-lo falharam.” (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.178)
Fabrício, entretanto, era cangaceiro, autor de façanhas mmaravilhosas e o primeiro homem assassinado que o narrador-personagem viu. Morto segundo a tradição cultural nordestina – “nu da cintura para cima, cosido de facadas” (RAMOS, Graciliano. Op. cit.,
p.180). Na sua descrição, a palavra corda não se oferece textualizada, mas sugerida nos seus correlatos constelares – prisão e morte:
Quitéria falava de Fabrício como de uma criatura extraordinária, narrava façanhas maravilhosas dele. (...) Mais tarde fugi de casa echeguei-me à cadeia pública, onde o corpo de Fabrício estava exposto, o tronco nu, os olhos vidrados. Esse cangaceiro tornou-se para mim excessivamente grande, e nenhum dos defuntos que encontrei depois, na vida e em livros, foi como ele (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.180)

A história de Fabrício encontra-se ampliada em outra micronarrativa sobre um criminoso de morte, que acrescenta a aura de dignidade e admiração, que um homicida, no sertão nordestino, provoca na população, em um julgamento coletivo:
Às vezes, horas depois de entrar na vila a rede coberta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia a praça, conduzindo o criminoso amarrado. (...) o matador tinha os braços presos, da barriga para cima estava todo embirado de cordas. (...) E o criminoso, pisando com força, atrevessando o quadro, a cabeça erguida (...) Olhavam para ele com admiração, e os cachimbos se envaideciam por havêlo pegado vivo. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.182-183)

Ao acompanhar o percurso da palavra corda, através do jogo de associações em que se apresenta relacionado com crime, prisão e morte, pode-se surpreender a figura do criminoso se revestir, progressivamente, de heroicidade, deslize significante que se faz visível no episódio de Amaro vaqueiro:
E a corda de couro girava. Na extremidade o laço ia acima e vinha abaixo. Na escola de seu Antônio Justino, decorando a geografia, eu comparava Amaro vaqueiro ao sol. Amaro vaqueiro era uma espécie de sol trepado num mourão. O laço que girava em redor dele era a terra. De repente essa terra esquisita caía sobre a novilha careta e prendia-lhe os chifres. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.184)

Amaro vaqueiro, assim, reveste-se de traços épicos. Na figura de Amaro pode-se, então, depreender o desejo de dominação circulando ocultamente o gesto assassino de Luís da Silva. Amaro vaqueiro é o senhor do seu laço ( a corda de couro) e com ele domina as novilhas; a corda que gira é como a Terra. Ter o domínio do laço significa ter o domínio da Terra, metáfora de força, de heroísmo, qualidades que Luís da Silva obsessivamente deseja possuir. No relato de Amaro, o perseguidor é o herói e os perseguidos são os animais, ou seja, a „bestialidade‟. Aspectos estes que o caracterizam como contraponto heróico da trama principal, por projetar anseios de coragem e heroísmo do homem fraco e comum. 
Funcionando como oposto dessa micronarrativa heróica, tem-se a história de seu Evaristo, que se suicida, abrindo novo ângulo de leitura para o ato criminoso do narradorprotagonista, que comentar-se-á mais adiante.
Pode-se, desde já, observar que corda, em sua polissemia, desliza sucessivamente de arma de defesa a instrumento de prisão; de instrumento de autodestruição a metáfora de poder, ressaltando, na variedade de nuances, o jogo das significações opostas, que articula e circunda a trama principal da narrativa de Angústia: prisão x liberdade; altivez x humilhação; homicídio x suicídio; heroísmo x covardia. 
Ao acompanhar o relato do crime na trama, depara-se inicialmente com um Luís da Silva espreitando os passos do outro, seguindo-o e perseguindo-o, para, finalmente, sobre ele saltar e estrangulá-lo. Enquanto espreita, cresce-lhe o ódio. E os olhos atentos, os dedos crispados e a atenção felina, o reinscrevem entre os seus antepassados sertanejos. Recupera, nesse instante, gestos e cólera de cangaceiros e jagunços, que a memória recolheu da experiência infantil, dos relatos de cantadores e da leitura. Exemplos que parecem modelar-lhe a ação, dirigindo suas atitudes segundo um código comportamental preexistenete, consagrado pela tradição cultural do sertão nordestino como heroico. Cada passo e gesto do perseguidor evocam um parâmetro no passado: gestos de ontem, de heróis que a mitologia infantil elegeu, e que se sucedem em contraponto com as ações do presente, na trama narrativa.
O jogo das significações nos dá os significantes cangaço, perseguição e prisão, desencadeiando e conectando as micronarrativas que serão comentadas a partir de agora.
Sumindo e reaparecendo como um balão colorido em noite de São João, Julião
Tavares provoca em seu perseguidor a memória junina, cena do passado real:
As meninas de Teotoninho Sabiá cantavam (...) debaixo de um mamoeiro de folhas torradas, Carcará assava milho verde na fogueira e largava risadas enormes. Meu pai dizia: „Hi! parece um papa-lagartas‟. Eu não sabia que espécie de bicho era o papalagartas nem por que meu pai se lembrava dele ouvindo as gargalhadas de Carcará. Tudo tão simples! (...) Teresa era boa, chupava o dedo mindinho e chorava quando chegavam as redes e os homens amarrados de cordas (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.231-232)

O significante cangaço, condutor dessa associação de variantes, aparece no episódio citado substituído por Carcará e “papa-lagartas”, enquanto “cordas” se incumbe de remeter a narrativa nuclear. Tudo leva a entender que o homem que largava risadas ao pé da fogueira seja um jagunço e matador. Seu apelido remete à  ave de rapina. O termo papa-lagartas não faz então mais que repeti-lo, insistindo nos significantes matar, comer e sobreviver, configuradores da imagem de jagunço. Completando a cena reaparece a descrição de redes e homens amarrados de cordas entrando na vila, resumo de casos de morte e prisão.
Segue-se a descrição do quadro de um cangaceiro morto – Cirilo de Engrácia: “Cirilo de Engrácia, morto, em pé, amarrado a uma árvore, coberto de cartucheiras e punhais, tinha os cabelos compridos e era medonho” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.232)
Várias vezes reaparece a visão de Cirilo de Engrácia morto, servindo para prefigurar, na narrativa, o morto Julião Tavares: em pé, amarrado a uma árvore. Assim o vê Luís da Silva enquanto persegue o rival, na representação oferecida pela imagem guardada na memória. Com isso, a representação de Cirilo oscila entre perseguido e perseguidor. Cirilo se assemelha a Julião Tavares, vítima naquele instante de Luís da Silva; já como cangaceiro, encarna o assassino frio a quem o mesmo Luís da Silva deseja se igualar. No fundo da cena, contudo, é o narrador-protagonista quem se considera perseguido e vítima como Cirilo, enquanto o negociante passa a ser visto como o perseguidor, representação simbólica da ordem social hostil ao protagonista.
Percebe-se o significante cangaço a se disseminar através do jogo dos pares antitéticos perseguido/perseguidor, assassino/vítima. Essa disseminação continua, porém, a fazer-se pelas micronarrativas seguintes, como ocorre com a de Cabo Preto, que introduz o contraponto entre a ordem social antiga e a ordem social vigente, acrescentando o par protegido/protetor, correlato aos anteriores:
Muitos anos antes os cabras de Cabo Preto haviam-se escondido na capoeira para não assustar sinha Germana. (...) Os cangaceiros eram amigos de Trajano, sinha Germana esquipava no caminho iluminado pelo sol cru. Nenhum ódio. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tinha umas reses que definhavam e entendia-se perfeitamente com os emissários de Cabo Preto (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.233-234)

No passado, o avô de Luís da Silva, Trajano, senhor de engenho, trocava favores com os cangaceiros. Oferecia-lhes cobertura e deles recebia proteção e respeito. No presente, os guarda-civis, desglorificados, protegem igualmente o poder estabelecido.
Num Estado autoritário, a polícia apresenta-se como espécie de cangaço institucional. Tem carta branca para agir de forma arbitrária e despótica a serviço do poder repressor do estado, e seus agentes, como os jagunços de ontem, obedecem, sem questionar, as ordens hierárquicas, conforme exemplifica o guarda-civil da narrativa de Angústia: “Se houver greve nas fábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas, atira, tremendo” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.196)  
Na relação do jagunço com o velho poder senhorial não há ódio. Ao jagunço não lhe é dada a consciência moral de seus atos; cabe-lhe obedecer, na certeza de que o poder de seu senhor emana do divino. Assim se passa com José Baía. Luís da Silva recorda
José Baía, célebre por suas façanhas, que culminavam sempre em morte:
 José Baía vinha contar-me histórias no copiar (...) Tão bom José Baía! O clavinote dele tinha vários riscos na coronha. Ninguém falava alto a José Baía, ninguém lhe mostrava cara feia. (...) Não me seria possível imaginar José Baía atacado de uma crise de ódio como a que me fazia pregar as unhas nas palmas. Provavelmente ele ficava sossegado na capoeira (...) O ouvido atento a qualquer rumor que viesse do caminho estreito, o joelho no chão, em cima do chapéu de couro, o olho na mira, a arma escorada na forquilha, com certeza não pensava, não sentia (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.234-235)

No seu íntimo não se dá conflito, tão condicionado está à obediência. Sem a intervenção da censura moral, pode exercer sua função com frieza e precisão. É, pois, como representação do matador paciente e frio, que José Baía vem juntar-se às demais imagens de jagunços. Marca-lhe, contudo, a diferença a especial conotação de afeto com que sua lembrança se encontra inscrita em Luís da Silva e que o configura como a versão mais completa do herói sertanejo. Amigo e protetor, pacífico contador de histórias, José Baía acompanha o narrado como modelo ideal de grandeza, síntese-perfeita de ferocidade e brandura.
Por outro lado, a micronarrativa de José Baía suplementa a de Cirilo de Engrácia, oferecendo, antecipadamente, o relato da possível prisão do assassino:
Entraste um dia na vila, amarrado de cordas, negro de suor e poeira, cercado por uma tropa de cachimbos. Os teus olhos claros se arregalavam num espanto verdadeiro. Envelheceste e és outro, uma inutilidade feita pela justiça. Os teus ouvidos e a tua vista se estragaram, as tuas mãos tremem, estás sério (...) (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.235) 

Essa referência insistente a José Baía e aos seus celebrados feitos é indício da angustiante presença de tudo quanto acabara por significar crime ou ato violento: romance de memórias, de sondagem interior, está evidente que se fixem, para mais tarde despontar as passagens ligadas ao crime. A memória incumbe-se de selecionar as lembranças que vão jorrando torrencialmente em Luís da Silva e escolhe as condicionadoras do drama.
O maior herói de sua infância é, portanto, José Baía, pistoleiro a serviço do avô, autor de várias mortes, a consciência tranquila porque cumpria ordens. Contava-lhe histórias de onças, que ouvia com prazer e temor. Momentos antes de matar Julião Tavares, Luís o evoca com insistência, como se ansiasse por uma reincarnação do capanga em seu ser covarde e doentio, chama-lhe de irmão, imagina-o cumprindo pena em uma cadeia nojenta, une-se a ele indissociavelmente, e só assim adquire coragem para saltar sobre Julião, como as onças das histórias: “Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se.” (RAMOS, Graciliano.
Op. cit., p.237)
Movido pelo exemplo de homens fortes, cangaceiros e jagunços, heróis do mundo sertanejo, Luís da Silva cumpre a tradição cultural da tocaia. Textualizada sob a forma de uma variante singular, que não utiliza arma de fogo, a tocaia se reinscreve, através da motivação do narrador, típica de emboscada, pela perseguição e espreita paciente e nervosa, para, finalmente, com a aproximação segura do inimigo, executar o ato final, selvagem, felino.
De acordo com o código cultural próprio do sertão, é esta uma forma legítima de luta. Luta que raramente se dá cara a cara. E o jagunço, hábil matador, vê-se consagrado, temido por sua astúcia e admirado pela coragem. Nesta grandeza passada, Luís da Silva se contempla, tentando, num único gesto, eliminar a intrusa presença do rival e se elevar perante seus próprios olhos como homem, para reatar o fio rompido de heroicidade nordestina.
Encontra-se ainda evocada a micronarrativa do suicídio de seu Evaristo, que sombreia as outras micronarrativas pelo significante morte. A figuração do corpo morto do velho suicida seria mera redundância se sua história não oferecesse outros significantes que lhe assinalam a diferença. Entre eles, orgulho e humilhação, paradoxais, mas básicos. Pois, é para fazer valer sua hombridade de ser humano e afirmar ainda uma vez sua já fragilizada altivez que seu Evaristo suicida.
A significação desse ato deve ser procurada nos limites entre a coragem e a covardia, como uma forma de recusa definitiva a uma existência desonrosa e como afirmação incontestável da individualidade do ser, da sua liberdade, do direito inalienável de dispor da própria vida. 
A verdade é que a história de seu Evaristo contribui para aumentar a complexidade da leitura do significante morte, já que sugere uma significação suplementar impossível de se omitir: o ato assassino, núcleo da ação, inscreve-se ele próprio como gesto ambíguo de homicídio e suicídio, pois o crime é, na verdade, um ato que provoca mais angústia, pois Luís da Silva passa a sofrer mais ainda depois do crime, do que já sofria antes do mesmo, configura-se, assim, o crime um castigo, ao invés de libertação.
Matar Julião foi-lhe a mais dura das provas; era um desafio à sua timidez, à sua introspecção, o que o tornava revoltado contra tudo e todos.
Presa de suas memórias, Luís da Silva passará da inércia degradante para a mais brutal atividade, à cuja realização sucede o prestar de contas com o passado, de onde a tremenda luta que o atira numa angústia miserável, obsessão e pesadelo intermináveis. 
Algoz e confidente do ato, Luís da Silva procura em si o impossível consolo e a inexistente justificativa, esquecido de que encontrará apenas mais culpa e angústia. Voltando-se freneticamente para o passado, à procura da fugaz compensação para a realidade cotidiana, o narrador acaba por resvalar em arestas perfurantes desse mundo que mais e mais se funde com sua própria dor e seu drama.
A  ideia fixa em cometer o assassínio de Julião Tavares diz respeito a um crescente dramático, que certas causas remotas atestam o despertar das primeiras manifestações do crime, quer por reflexo dum ambiente sobrecarregado de banditismo, e de audácia criminosa, como o da fazenda em que cresce, quer por sentir na carne quão significativo lhe seria a realização dum semelhante. Tudo isso conjugado lhe impele à concretização da ideia fixa: cometer o crime. Após a feitura do mesmo, Luís da Silva será unicamente a lembrança do que foi e do que fez. Sua angústia é quase a consequência do complexo de culpa que o assalta, por sentir a inutilidade do esforço praticado. O desespero é mais causado pela sensação de vazio experimentada ante o que supunha decisivo para sua
vida interior.
Voltado que está para o passado, não raro Luís da Silva irá desvendando no seu âmago certas sensações ali deixadas por cenas e passagens que atestam como disponibilidade para o crime. Vivendo num ambiente saturado de cangaço, criado à solta, é evidente sentisse logo nos primeiros anos a tentação de praticar atos julgados corriqueiros para indivíduos, como José Baía, afeitos à profissão de matar.   
Luís da Silva prepara minuciosamente o assassínio de Julião Tavares, mas mesmo aqui em que poderia ocorrer apenas a descrição dos fatos exteriores à sua consciência, tem-se a inserção estilística de sua emotividade, de forma bastante confessional:
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José
Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-se, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figuras insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória do Mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.237-238)

Neste trecho, o crime é representado de forma resumida, mas a evocação comparativa da infância (“silenciosos como os das onças de José Baía”), perturba o fluxo linear, retardando a ação, mas adquirindo tom confessional e memorialístico, além de criar “suspense” e dando profundidade ao relato. Pois, predomina a consciência da personagem, que avalia a situação, em relação a ordem social da qual é originária
(interior de Alagoas), na qual vivia-se em meio a características feudais e patriarcais (onde um criminoso, como José Baía, seria digno de admiração), porém no presente da enunciação, iso já não tem mais tanta validade. Já que Luís da Silva percebe a atitude anti-social praticada por ele (e que seria “normal” no passado).
Cometido o crime, impulsionado por um passado aterrador em que se misturam recordações de um ambiente infestado dos mais perniciosos exemplos, pelo contato direto com experiências prematuras na criança ao presenciar atitudes violentas, além de outros fatos, não restou a Luís da Silva senão mergulhar cada vez mais em seus complexos. Inútil o crime, mais arraigava no espírito a convicção de que o ato falhado originava-se de um acervo de memórias marcadas de funestas experiências. Daí a angústia, em que tomba depois de perceber a gratuidade do ato. Autômato a praticar um ato fatal, o recobro momentâneo dos sentidos deu-lhe a sensação mortificante da angústia, que o acompanhará para todo o sempre.
CONCLUSÃO

Pode-se afirmar que Graciliano Ramos é um dos poucos escritores, que obriga o leitor a se envolver psicologicamente com o drama vivido pelas personagens de suas obras, pois ao usar o recurso do memorialismo como forma de testemunho, valendo-se da narrativa em primeira pessoa, com incessante fluxo de consciência e rememorações, faz o leitor perceber, no caso, da obra corpus da pesquisa, Angústia, a dor do protagonista da mesma, Luís da Silva.
O viés do memorialismo foi, portanto, escolhido pelo escritor alagoano para ressaltar as agruras de Luís da Silva, pois como é a própria personagem principal do romance, que narra seu drama, o viés do memorialismo foi o mais apropriado para Graciliano Ramos testemunhar a dor da sua personagem, Luís da Silva, um homem frustrado, angustiado, revoltado contra tudo e todos, paranoico, solitário, que no desespero, pensa que o único meio de sair dessa situação, é a morte do rival, Julião Tavares, que “roubara” o interesse amoroso de Luís da Silva, Marina. Ao perceber que o assassinato de Julião não diminuiu sua angústia, resta a ele rememorar avidamente suas memórias, buscando entender os fatos ocorridos em sua vida, contudo, as rememorações de Luís da Silva, não conseguirão salvá-lo do sofrimento a que ele está submetido perpetuamente.
As personagens graciliânicas são sempre, assim, densas psicologicamente e sempre passando por problemas, questões ou crises existenciais, é o caso de Luís da
Silva, protagonista do corpus da pesquisa, Angústia, romance escrito por Graciliano Ramos e, que enfoca o drama de Luís da Silva, contudo o drama dele é tão universal e atemporal, que pode ser de qualquer um de nós.
Enfim, o melhor recurso encontrado pelo escritor Graciliano Ramos, foi o do memorialismo, para demonstrar e testemunhar com propriedade a angústia de Luís da
Silva.  
























REFERÊNCIAS

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----------------------------------------. O romance social brasileiro. São Paulo: Editora Scipione, 1993.
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. São Paulo: Editora McGRAW-Hill do Brasil, LTDA, 1974.
BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Tempo-memória no romance. Catálise Editora, s/d.
BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
--------------------------. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1981.
CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia , de Graciliano Ramos. São Paulo: Editora Ática, 1983.
COUTINHO, Afrânio (Direção) e COUTINHO, Eduardo de Faria (Co-direção). A literatura no Brasil (volume 5 - Era Modernista). São Paulo: Global, 2001.
CRISTÓVÃO, Fernando. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986.
DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
MALARD, Letícia. Ensaio de literatura brasileira: ideologia e realidade em Graciliano Ramos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1972.
RAMOS, Graciliano. Angústia. 63 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2008.
---------------------------. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 1982.

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