domingo, 30 de abril de 2017

2 poemas de 2017-Por Rafael Vespasiano- "A juventude e o índio a lutar sempre!"

Poemas de Rafael Vespasiano:

1)

“O Brado da Luta sem Fim!”

(POR RAFAEL VESPASIANO)
30 de março de 2017.

“Sonhos, planos; conquistas, amores; frustrações, erros,
estas palavras sempre marcaram qualquer ‘Juventude’, em quaisquer tempos,
mas nos dias atuais os jovens têm medo, a qualquer momento, a usurpação
dos seus direitos e deveres se aproximam deles como ratos da destruição
de tudo que os ‘Jovens’ dos tempos de outrora construíram, a ferro e fogo...

A Aurora e a Escuridão se confundem na Penumbra das Incertezas da ‘Juventude’,
porém, brav@s ‘Jovens’, seja na idade ou seja no espírito, unem-se para lutar
e nada temer do que estar para se enfrentar; conquistas ‘eles’ querem,
em qualquer setor da vida, afetiva ou política; o que importa é não recuar
e retroceder jamais ao que já foi conquistado, a ferro e fogo...

Conquistas e frustrações; decepções e erros fazem parte da vida de qualquer um,
todos seres humanos vivem para isso, alegrias e tristezas, dores e infortúnios,
querendo sempre um porvir melhor do que o passado para os ‘Jovens’ que prosseguem,

nesta luta sem fim pela Vida que todo ‘Jovem’ sempre Sonhou, Sonha e Sonhará:
Liberdade, Igualdade perante aos outros cidadãos, Irmandade e respeito entre tod@s.

Os ‘Jovens’ bradam: “-Utopia, não, só queremos oportunidades de nada temer!””.


2)


“O Indígena a Naufragar”
(“Eu a olhava com meu olhar pardo,
em que há o tigre e a gazela.”).
(Lima Barreto).
I
“Das terras do sem-fim da América, Iracema, das tribos originais do Brasil,
da união amorosa com Martim, entre colonizador e índia: o nascimento
de Moacir: primeiro brasileiro miscigenado.
Porém, o filho do Brasil é raptado e para a Europa vai -, é o elemento unificador
da miscigenação sendo levado daqui, para o continente, o local que comanda a
destruição dos ameríndios e dos índios brasileiros, a plena aculturação
deste país chamado Brasil que na verdade é tão longe daqui...

Iracema morre; Logo, Iracema, outrora a virgem dos lábios de mel, sucumbe a
desilusão, com o fel na boca trazido pelo europeu,
a morte da índia dos cabelos mais negros que as asas da Graúna, só reforça a
vitória dos brancos colonizadores.
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Nosso verdadeiro herói sempre foi um ser livre por Natureza e não um cavaleiro  
andante e medieval do Graal!
Peri e Ceci formam um par romântico belíssimo de pura idealização romântica,
entretanto, não configura de maneira alguma a formação do povo brasileiro...
Peri, herói guarani-goitacá, é um cavaleiro medieval europeu perdido no Brasil...
Submisso a um regime feudal de tão imaginativo, que a palmeira de ventura
suprema a conduzir Peri e Ceci rumo à construção da América original, se perde
no pitoresco de uma América tão longe daqui...
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 Só podemos crer mesmo em Ubirajara, senhor da lança, que tinha o
comando de sua nação, nos tempos ainda pré-cabralianos.
 O canto dos Tupis era a música, a poesia dos nossos senhores
originais.
Nos tempos dos Araguaias, Tapuias, Tocantims, já existia civilização e 
cultura em suas Terras. E assim bramiam:
‘- Tacapes, arcos, plumas da vitória, setas mais rápidas que o voo do gavião,
a sabedoria dos anciões e pajés; tudo, ó, Tupã, glorificai e unificai as tribos tupis,
na tribo dos Ubirajaras, para enfrentarmos, os guerreiros do mar, caramurus, que
desafiam a nossa nação e as nossas terras!’
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 Os indígenas se mantiveram fiéis a Tupã, o Deus do Sol, ofuscado
 pelos europeus ávidos das riquezas do Brasil...
Mesmo os Jesuítas escravizando e aculturando os donos do País, os indígenas
sempre ignorando os supostos ensinamentos civilizatórios, clamavam:
‘ – Tupã, evocamos a ti, expulsai os invasores, os anhangas, os espíritos do mal,
os colonizadores, fantasmas guerreiros do mar, caramurus, ó, Tupã, destruí-os
com seus raios e trovões heroicos!’
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O elixir do pajé sábio para o combate chamou
seus guerreiros -, seja de batalhas, seja de guerras sexuais -,
inflamando de ardor os valentes tupis para as lutas do amor!
Um elixir que antecipou alguns remédios dos brancos dos séculos vindouros.
Este beberico dos pajés de tão milagroso, os tupis tomavam uma conta
era mais de anos e anos de tesão e calor!”
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II
“E a partir de então passou a entrar em extinção os indígenas a se tornar
cada vez mais raros nos séculos posteriores...
E de nada mais vale nem mesmo as belezas naturais
de uma nação sem o seu cerne original de nacionalidade, perdida nas ruínas do
processo de destruição e aculturação colonial!
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No século XX, em algum momento, o mito fundador da nossa Nação,
foi reconstruído com a figura de Martim Cererê, este Ser é a fusão
da cultura dos índios com as outras etnias formadoras da nossa Terra;
o Modernismo Heroico acabou por recuperar a figura do Saci Pererê,
mito dos índios do Sul e de sua cultura original.
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Os manifestos do Pau-Brasil e da Antropofagia des-reconstruíam tudo que vinham
dos colonizadores para o bem da Poesia realmente brasileira.
Oswald e Mário ao contribuir com seus poemas, e, com a figura mitopoética de
Macunaíma, este ser épico-lírico que nos dizia que ‘brincar’ é normal,
em um romance Antropofágico, no qual ressaltava-se as glórias e as não tão
glórias dos índios, assim como qualquer etnia marcada por erros e acertos;
Macunaíma era sincero ao menos em sua cultura autóctone e miscigenada, no
cerne de originalidade da nossa nação, diferente de outros povos arrogantes que
destruidores o são...
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O movimento estético literário modernista é dos Vencedores,
apesar da Antropofagia e o ‘Pau-Brasil’ de Oswald a tentar, hibridamente,
recuperar nosso elemento original, mas esbarram em perguntas como:
‘Isto é Nação?’; ‘Isto é Pátria?’; ‘Isto é Brasil?’...”
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III
“A outrora nação altiva são os Timbiras guerreiros destemidos, que em festas
comemoram as vitórias com danças e Poesia, festins onde as copas são cheias de
cauim.
Contudo, começam os martírios; simbolizado na dor de um índio velho,
vencido, mas valoroso e corajoso, a profetizar:
‘ – As nossas matas serão devastadas por fortes guerreiros vindos do mar,
a tribo Tupi sucumbirá no Ocaso da derrota para os inimigos caramurus,
mesmo assim lutaremos até o fim sem covardia, morreremos e morrerei,
meu nome o diz: I-Juca-Pirama!’
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Para uma des-resconstrução da nossa verdadeira nacionalidade talvez
só pela união da Política, mas esta não sozinha,
mas irmanada à poesia mitopoética e geopoética do nosso povo autóctone
um visionários disse:
‘ – Estas campanhas de destruição lembram um crime, um crime das
nacionalidades originais do nosso país que continuam até os dias
atuais.’
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O Índio, taxado pelos europeus de ‘Primitivo’, ‘Bárbaro’...?
‘ - Não, creio que não, primitivos e bárbaros outros são...’
Colonizadores europeus massacradores de um continente já     
formado por Natureza e Civilização antes da chegada destes que
só fizeram desmantar e iniciar o processo lento, doloroso e amargo de eliminação
do nosso elemento maior: o ÍNDIO, o verdadeiro americano, que continua sendo
humilhado até os dias atuais: assim se configuram os Con-Fins
das terras outrora do sem Fim...
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o índio perdido está nos mares e rios que dominava,
à deriva nas terras que lhe foram roubadas e está a perder.
‘ - O que lhe resta?:
Naufragar...’”


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sábado, 29 de abril de 2017

"A visão geopoética e mitopoética d´Os sertões, de Euclides da Cunha"

"A visão geopoética e mitopoética d´Os sertões, de Euclides da Cunha"


Ensaio Por Rafael Vespasiano.



"Neste ensaio é apresentada uma visão mitopoética da obra euclidiana, Os sertões. Já que Euclides da Cunha não está (tão somente) relatando um fato histórico, qual seja a Guerra de Canudos deflagrada no sertão baiano, mas o que o escritor propõe é um consórcio entre ciência e arte, conforme os estudos relevantes do Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009).



Tal consórcio é demonstrado não somente nas meras relações entre ciência e arte perceptíveis na obra, porém ele é apresentado também na miscelânea dos gêneros literários, pois n´Os sertões, os gêneros são múltiplos, “o livro”, segundo o estudioso Berthold Zilly, “reúne as três formas básicas da literatura – a epopeia, o drama e a lírica (...) enfatizando principalmente os traços de epopeia e tragédia.” (ZILLY, 1998, p. 15).
Essa afirmação vai de encontro à visão mitopoética proposta pela própria obra euclidiana, ou segundo o crítico Ronaldes de Melo e Souza, Os sertões possui um caráter geopoético, pois “Geopoética significa poética da terra.” (SOUZA, 2009, p. 7). A visão geopoética é justamente “o estatuto calculado do vigor da inspiração artística e do rigor científico da reflexão, que decorre do projeto euclidiano do consórcio da ciência e da arte (...)”. (SOUZA, 2009, p. 7).
A visão mitopoética ou geopoética só é possível, justamente, pelo consórcio entre a ciência e a arte, que transparece na obra de Euclides da Cunha. “A poeticidade preconizada pela mundividência euclidiana não se restringe ao domínio disciplinar da estética, mas se distingue no amplo diálogo interdisciplinar com os discursos da filosofia e da ciência. (...) seu dialogismo se caracteriza como interdiscursivo.” (SOUZA, 2009, p. 7).
É essa visão mitopoética (geopoética) que singulariza a obra euclidiana, pois Euclides da Cunha “não foi o primeiro a escrever um livro sobre Canudos” (ZILLY, 1998, p. 14). E nem o último, porém sua originalidade advém da abordagem múltipla de discursos, de gêneros literários, o que perfaz uma obra originalíssima e de elevada criatividade poética. Não caiu como muitos caíram à época em relatar a Campanha de Canudos, pelo viés das teorias deterministas e evolucionistas “sobre as interações entre raça e civilização”. (ZILLY, 1998, p. 14).
“(...) Trata-se de um livro-síntese de temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias, quase uma enciclopédia do sertão, (...), obra polissêmica, por isso mesmo sugestiva, instigadora da imaginação do leitor. (...)” (ZILLY, 1998, p. 15). O poder de sugestão da obra é tamanho que o autor ao escolher o título da mesma, já opta pelo plural, justamente, para sugestionar ao leitor a completar as lacunas deixadas no decorrer do texto, pelo uso recorrente de reticências.
Os sertões são, portanto, uma obra plural de sentidos, de ideologias, de gêneros e de discursos. O trecho seguinte da própria obra demonstra o exposto quando se pensa em relação ao caráter multifacetado de discursos:
Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. (...) realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas; (...) o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se, lentamente, a América. (CUNHA, 2009, p. 93).

Os discursos que ora se apresentam são não só o geológico, de âmbito científico, mas também o discurso religioso, pois o trecho remete geopoeticamente ao Gênesis Bíblico. Num caráter metamórfico, a terra retratada não se restringe ao sertão baiano, mas a toda Terra, ou mitopoeticamente a todo o Cosmos, a toda a Vida em seu eterno devir poético e de metamorfose constante.
No trecho mais acima, extraído da primeira parte da obra Os sertões, denominada A Terra, segundo a especialista euclidiana Walnice Nogueira Galvão (1995), Euclides da Cunha mostra a formação geológica da Terra “como um processo candente e até incandescente, quer dizer, os vulcões estão soltar larva, há milhões de anos atrás (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24). Ou seja, ainda de acordo com a mesma estudiosa, “só Deus poderia ter visto os Andes que saltam para cima.” (GALVÃO, 1995, p. 24).   
Reitera-se, portanto, o que fora asseverado anteriormente: o escritor Euclides da Cunha não se refere (tão somente) à formação geológica do sertão baiano, onde ocorreu a Guerra de Canudos, mas a um processo em maior escala relativo à formação da Terra, do Cosmos. Este que está em constante metamorfose e, esse devir é, sobretudo, poético. Portanto, a Literatura é a forma de arte mais que adequada para retratar tais aspectos, ressaltando uma vez mais que n´Os sertões, ocorre então, naturalmente, o consórcio entre ciência e arte.
Como afirma a estudiosa Walnice Nogueira Galvão: “(...) nada é gratuito no livro.” (GALVÃO, 1995, p. 24) Ela constata isso ao perceber que a divisão da obra em três partes, a saber: A Terra, O Homem e A Luta, é fruto de um plano arquitetônico do escritor de prefigurar já na primeira e na segunda parte, a luta que se desenrola na terceira parte, pois: “Isso [plano arquitetônico] constitui um esquema preparatório. (...) Da luta que vai aparecer lá no fim. Ele [Euclides da Cunha] já está colocando tudo que existe na natureza e na sociedade como uma perpétua luta entre elementos que se degladiam (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24-25).    
Na segunda parte, Euclides da Cunha “volta-se (...) para a análise do homem que resultaria daquela [natureza]. O tema central da segunda parte de Os sertões, ‘O Homem’, é a formação antropológica do brasileiro, resultante da miscigenação de três raças.” (SANTANA, 1998, p. 126). O sertanejo é, para Euclides da Cunha, o resultado daquela “miscigenação”, e o primeiro “é, antes de tudo, um forte.” (CUNHA, 2009, p. 207).
“Fez-se forte, esperto, resignado e prático.” (CUNHA, 2009, p. 212), o sertanejo possui essas características, em virtude das condições naturais do sertão brasileiro. Já que “É natural que o seja.”, pois “Viver é adaptar-se. Ela [natureza] talhou-o à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...” (CUNHA, 2009, p. 215).
E, o que se verifica também é que “a natureza é sempre uma aliada dos sertanejos, defendendo-os e amparando-os, e um inimigo dos soldados, que se apavoram diante do desconhecido.” (SANTANA, 1998, p. 126). Já que a luta prefigurada é, de certa forma, entre o forasteiro, representado pelos soldados republicanos, vindos do litoral, do sul do Brasil, dito “civilizado”, que quer trazer para o sertão, para o norte, supostamente “atrasado”, a República, a qual seria a “modernidade” política e provedora da paz e responsável pelo (re)-estabelecimento da “ordem e progresso” da civilização brasileira, do Brasil.
Porém, os sertanejos viam de forma diferente, pois em nenhum momento foram consultados a respeito da Proclamação da República, pior que isso eles se sentiam humilhados e até furtados pelos impostos cobrados por ela. Assim, surge a figura de Antônio Conselheiro, que aparece pela primeira vez na obra euclidiana através de uma “associação a uma ‘anticlinal extraordinária (...) sublevada das camadas mais profundas da nossa estratificação étnica’”. (SANTANA, 1998, p. 127).
Conselheiro aparece como um líder messiânico, sebastianista, como o próprio Euclides da Cunha propõe n’Os sertões, símbolo de um gritante atavismo, um ser deslocado no tempo, mas é explicável o seu aparecimento, dadas as condições do meio sertanejo brasileiro e seus aspectos sociais e religiosos. “Antônio Conselheiro, como a dobra, teria se originado das forças internas à sociedade sertaneja, dela se destacando apenas em função do rebaixamento do meio que o cercava, e se destinou à história como poderia ter seguido para o hospício.” (SANTANA, 1998, p. 127).
Cita-se trecho d’Os sertões para exemplificar o exposto acima:
Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram. (...) O fator sociológico (...) de sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns. (CUNHA, 2009, p. 256-257).

Tal trecho reforça o asseverado mais acima, em relação à figura atávica de Conselheiro. E, no estudo de José Carlos Barreto de Santana (1998), este sustenta com propriedade que a metáfora usada por Euclides da Cunha para ressaltar o atavismo de Antônio Conselheiro, “anticlinal extraordinária”, pode ser denominada de “metáfora geológica”.
E, assim, mais uma vez reforça-se o caráter mitopoético (geopoético) da obra euclidiana. Pois o autor não reduz sua visão meramente à pessoa de Conselheiro, no aspecto psicológico, mais se soma a essa perspectiva, o caráter social, religioso, e até, metaforicamente, geológico. Então, dessa forma ressalta-se o proposto neste ensaio: o caráter mitopoético da obra de Euclides da Cunha é reflexo do consórcio entre arte e ciência, originando uma geopoética, na acepção teórica de Ronaldes de Melo e Souza (2009).
Na comunhão geopoética entre terra, natureza (flora) e sertanejos, “as caatingas atuam como personagens que se aliam aos sertanejos no combate cerrado contra os soldados do governo. Diuturnamente treinadas pela terra para suportar o embate das vicissitudes adversas (...)”. (SOUZA, 2009, p. 42). As caatingas participam como verdadeiras aliadas dos sertanejos contra os forasteiros:
Árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante... (...) Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. Esta impõe-se, tenaz e inflexível. (...) As plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda. (CUNHA, 2009, p. 116-117).

 Dado esse tom geopoético é que a caatinga revela-se aliada dos sertanejos e tornam-se “falanges vegetais” contra os soldados da República. “A falange dos vegetais atua em consonância com o magistério telúrico. A própria terra se mobiliza na luta contra os invasores (...)” (SOUZA, 2009, p. 42). A metáfora “batalha surda” proposta por Euclides da Cunha já prefigura a luta entre canudenses e republicanos, sendo que os primeiros em comunhão com a caatinga. Esta está em consórcio com seus irmãos sertanejos ante os forasteiros da República.  
Mitopoeticamente, portanto, é demonstrada e evidenciada a união entre canudenses e a caatinga na “batalha surda” contra os soldados. Nesse consórcio mitopoético, ocorre um diálogo entre o gênero narrativo e o gênero dramático, de acordo com o Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009). E, que já foi apresentado no início deste ensaio. Pois, é, justamente, esse diálogo entre gêneros literários, entre discursos, e a relação entre ciência e arte, que se confirma o caráter mitopoético (geopoético) da obra euclidiana.
 Para Zilly (1998), a cena mais impactante “é a do ‘complemento do assédio’, no dia 24 de setembro de 1897. Narrada por meio de metáforas teatrais. (...) Trata-se, portanto, de um drama não apenas metafórico, mas de certa forma real, que expressa exemplarmente a tendência euclidiana de apresentar a história como peça de teatro.” (ZILLY, 1998, p. 23). O que também é proposto pelo teórico Ronaldes de Melo e Souza (2009).
A tal cena é apresentada como “ato de tragédia”: “Ante a vitória iminente, a guerra apresenta-se aos soldados sob aspectos lúdicos. Metade da tropa transforma-se em público e passa a torcer pela vitória da outra metade, vendo a guerra quase como divertimento.” (ZILLY, 1998, p. 25).
Os acontecimentos são narrados “de forma rápida, dramática, rumo a um clímax” (ZILLY, 1998, p. 25), mas são interrompidos e, assim, frustra-se a expectativa do leitor (espectador) que já estava a preparar-se para o desfecho:
Porque a ação se delongava. (...) Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide repentino. (...) Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. (...) Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam. (...) A insurreição estava morta. (CUNHA, 2009, p. 716-717).

A derrota dos canudenses era, contudo, inevitável, mas o narrador a apresenta à conta-gotas. E, dramaticamente, percebe-se vitória dos soldados, perceptível pelos “brados e vivas”, típicos do teatro. Os soldados não conseguem perceber o quanto trágico é esse massacre de patrícios, que não é em nenhum momento a vitória da República sobre insurgentes imperialistas; porém, trata-se da derrota do que Euclides da Cunha denominou de “cerne de uma nacionalidade”, é o fim da raça sertaneja em sua maior autenticidade. Euclides nos oferece além da visão dos vencedores, que já fora divulgada em outras publicações da época, ele nos apresenta em seu livro, de forma originalíssima, também a visão dos vencidos.



Para Berthold Zilly, “o narrador e com ele, os letrados do Brasil e, com eles, os do mundo inteiro assumem, também a perspectiva de espectadores. (...) O que está se desenrolando diante de seus olhos [dos soldados] e dos nossos, (...), é um fato real que, por sua vez, é um ato de tragédia.” (ZILLY, 1998, p. 26-27). Dessa forma, o “narrador sincero”, assim denominado pelo próprio especialista euclidiano Zilly (1998), ou o “historiador irônico”, denominação teórica do crítico Ronaldes de Melo e Souza (2009), apresenta a visão dos vencidos da Guerra de Canudos e, não tão somente a dos vencedores, largamente apresentada até o momento da publicação da obra Os sertões.
Em suma, Os sertões “é uma obra ímpar na cultura brasileira.” (SANTANA, 1998, p. 130). Visto o diálogo entre vários discursos, entre várias áreas do conhecimento humano. E, pelo seu caráter dialógico entre os mais diferentes gêneros literários: ora é marcado pelo épico, ora pelo lírico, ora pelo dramático, ora pelos três ao mesmo tempo. Constituindo-se, assim, em uma obra literária híbrida.
E, por fim, deve-se ressaltar o tom mitopoético característico da obra euclidiana, na qual é percebido o consórcio entre ciência e arte. E, mitopoeticamente, essa comunhão se dá pela “visão geopoética de Euclides, a forma deveniente da natureza sugere ao poeta da ciência e da arte a forma mobilizada no ritmo de transe. A isomorfia geopoética da forma da natureza e da forma da arte consorciada com a ciência constitui o traço específico do estilo narrativo euclidiano.” (SOUZA, 2009, p. 129).
   Para narrar o eterno metamorfosear da natureza telúrica e sua relação com o ser humano e, para abranger toda a complexidade do devir poético da Mãe-Terra, o autor Euclides da Cunha faz uso artístico da poética da terra, ou geopoética. Mitopoeticamente, o escritor encontrou um meio de apresentar o consórcio entre ciência e arte, no âmbito literário, esse processo chama-se mitopoética, ou geopoética."





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: (campanha de canudos). Edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Os Sertões: uma análise literária. In: MENEZES, E. Diatahy B. de & ARRUDA, João (Orgs.). Canudos: as falas e os olhares. Fortaleza: Edições UFCE, 1995, p. 23-30.
SANTANA, José Carlos Barreto de. Geologia e metáforas geológicas em Os sertões. In: História, Ciências, Saúde. – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998, volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 117-131.
SOUZA, Ronaldes de Melo e Souza. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998, volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 13-37.



Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955, Nicholas Ray): ("Rebeldes sem causa?")

Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955, Nicholas Ray):




                                                                 ("Rebeldes sem causa?"):


                                                           (Resenha por Rafael Vespasiano).

“Juventude transviada é um daqueles filmes que se tornam símbolos das gerações anteriores, contemporâneas e retratadas no roteiro do mesmo e das gerações de jovens, em específico, vindouras.
Com cenas marcantes e tão empáticas ao espectador produzem emblemas que não mais o representam simplesmente, mas remetem ao meio, viram condição indissociável do cinema e da Humanidade.
Um filme único, pois reuniu de uma vez só no mesmo trabalho de cinema, dois dos maiores incompreendidos no cinema e na vida real. James Dean, o jovem ator que morreria prematuramente em circunstâncias não totalmente esclarecidas até hoje; e Nicholas Ray, o cineasta rebelde e maldito, o diretor que filmou o descompasso entre o homem e a Humanidade.



 O resultado expresso na obra confunde o real e o ficcional, daí sua atemporalidade clássica, pois a ambiência do filme é desilusão e falta de esperanças e expectativas; a sensação de tragicicdade acompanha às personagens o filme inteiro, numa sensação angustiante para aquela geração tão jovem e desorientada dos anos 1950, meados da década de 50, nos Estados Unidos da América, ou melhor, no mundo.
 Completam o principal time do filme a atriz Natalie Wood e o ator Sal Mineo. Juventude transviada conta a história de Jim Stark (James Dean), ‘garoto-problema’ que percorre cidades e cidades com sua família desestruturada, na esperança de que o filho ‘tome consciência? ’, e, encontre seu ‘papel’ na sociedade. A partir de uma insatisfação juvenil surge um conflito de gerações, a falta de diálogo e comunicação entre pais e filhos, a deterioração da relação familiar anuncia a vinda de uma nova geração, com novos valores e interesses. Atual? Anos 1950 e anos 2010: a solidão advinda do rompimento com um mundo que não lhes interessa mais.



Nicholas Ray em Juventude Transviada preocupou-se em transpor para as telas a falência de várias instituições sociais aparentemente caducas e desconexas com a pós-modernidade a manifestar-se. Conceitos como polícia, família, escola, ética, honra e moral são discutidas no filme em tom de sarcasmo e ironia ímpares.
Nicholas Ray conferiu dignidade à adolescência em Juventude Transviada. Em um dos raros filmes da História Cinematográfica, os dilemas da juventude, a desconfiança e a solidão, a insatisfação, a insegurança e a violência sem razão aparente e à flor da pele são tratados de forma séria, irônica, mas, a buscar uma identificação para a juventude de todos os tempos com a sociedade e aa garantir seu local de direito e deveres na Humanidade. Enfim, discute o papel da juventude e o porquê de seus desvios e inconformismo, e a forma da mesma adquirir uma noção do porquê e da motivação de existir em sociedade, para esta discussão o filme fica em aberto quanto a solução. Pois um clássico como este permanece atual; basta vermos os acontecimentos da juventude transviada no século XXI, 2017, cada vez mais com famílias desestruturadas e sem uma razão e sentido para existir, uma juventude desorientada e sem referências, uma juventude cada vez mais perdida e desesperançada.

Assim Ray realizou, em 1955, uma obra atemporal, um clássico profundamente humano e do cinema. ”


segunda-feira, 17 de abril de 2017

(QUINCAS BORBA, MACHADO DE ASSIS): (“O Humanitismo: a paródia machadiana”)

(QUINCAS BORBA, MACHADO DE ASSIS):



(“O Humanitismo: a paródia machadiana”):



Por: Rafael Vespasiano Ferreira de Lima


“Machado de Assis possui uma obra ímpar na história da Literatura Brasileira. Conseguindo ir além, ao tornar-se uma das obras literárias de Língua Portuguesa mais reconhecidas e importantes perante à crítica internacional.
Pode-se, inclusive, falar-se em estilo machadiano, pois Machado de Assis é um escritor avesso às classificações estilísticas do século XIX, onde o escritor era taxado ora como romântico, ora como realista. E Machado, em suas críticas, já demonstrava o absurdo dessas nomenclaturas literárias e, valendo-se do uso da ironia, Machado de Assis criou um estilo próprio, um estilo que ora parodiava o Romantismo, ora ironizava o Realismo.
Este ensaio busca analisar alguns aspectos da filosofia do Humanitismo, criada pelo filósofo louco Quincas Borba. Quincas surge como personagem, pela primeira vez, na obra machadiana, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881 e, reaparece no romance Quincas Borba, de 1891. O Humanitismo é uma paródia do Positivismo, de Comte. Positivismo que estava tão em voga nos debates científicos e filosóficos do Brasil, no século XIX. Porém, Machado percebia nessa atitude cientificista, positivista, e que levaria, na literatura, ao Realismo-Naturalismo, uma visão deturpada da sociedade oitocentista brasileira.
Durante o ensaio, procurar-se-á explicitar a paródia machadiana, por meio de trechos dos dois romances citados, nos quais aparecem formulações teóricas do Humanitismo, com o intuito de analisar a visão irônica de Machado de Assis em relação ao Positivismo e a outros ismos do século XIX.
Quincas Borba surge como personagem, no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, como amigo de escola de Brás Cubas, que depois some e quando reaparece, surge como mendigo, para depois reaparecer mais uma vez, só que agora como herdeiro de uma fortuna de um parente de Barbacena. A partir desse momento, de novo ricaço, Quincas, ainda em Memórias Póstumas, passa a debater muito com Brás Cubas, a  questão do Humanitismo, filosofia criada por ele.
No capítulo CXVII, de Memórias Póstumas, denominado “O Humanitismo”, Quincas Borba, enfim, apresenta para Brás Cubas, a sua Filosofia do Humanitas, “sistema de filosofias destinado a arruinar todos os demais sistemas.”[1] Prossegue a teorização da filosofia por Quincas:
 - Humanitas, dizia ele, o princípio das cousas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do homem e das cousas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a mutiplicação personificada da susbstância original.[2] 

O narrador machadiano, nessa passagem, na voz do filósofo Quincas Borba, parodiou as fases que constituem o Positivismo, de Comte, também marcado por três fases: a fase do mito (a primeira e mais atrasada), a segunda fase, a fase da filosofia e, a terceira fase, aquela que seria marcada pela razão, pela ciência e pelo racionalismo. A fase “mais” positiva, do sistema filosófico de Comte, já que seria marcada pelo apuro da ciência e por um racionalismo pleno.
Machado de Assis não acreditava nas explicações absolutas propostas por teorias como o Positivismo de Comte, ou o Evolucionismo de Darwin, ou o Determinismo de Taine e Spencer. Para Machado, todos os tipos de cientificismo e ainda mais, a vertente literária, que era influenciada por todos esses ismos, o Realismo-Naturalismo, eram tendências monológicas, e o escritor carioca ia além “Machado ironiza abertamente a estética realista-naturalista, depois é claro de declarar a decadência do Romantismo. Sua posição é bem clara: o Realismo e sua tendência em pesar nas cores e na descrição minuciosa do real não correspondem ao papel da arte.”[3]
Para Schwarz[4], Positivismo, Naturalismo e Evolucionismo Darwiniano, e suas respectivas terminologias, estranhas ao dia-a-dia do Brasil oitocentista. Anunciavam rupturas radicais, prometendo substituir a “patronagem oligárquica” por novas formas (modernas) de autoridade, “fundadas na ciência e no mérito intelectual.”[5]. Machado, contudo, não acreditava nessas promessas, e como escritor parodiava-as, por exemplo, na fórmula: “Ao vencedor, as batatas!”, do Humanitismo, de Quincas Borba, paródia do Positivismo, de Comte.
Ainda para Schwarz
(o) Humanitismo, a mais célebre das filosofias machadianas. Como sugere o nome, trata-se de uma sátira à floração oitocentista de ismos, com alusão explícita à religião comtiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais outras filiações, já que em lugar dos princípios positivistas afirmam a luta de todos contra todos, à maneira do darwinismo social. A própria guerra generalizada, contudo, não passa de ilusão, pois tem fundamento monista: Humanitas é o princípio único de todas as coisas, residindo igualmente nas partes vencida e vencedora, no condenado e no algoz, de sorte que não há perda alguma onde parecia haver uma desgraça. Daí que a dor não existe nem tem cabimento.[6] 

“Veja-se por exemplo o clássico ‘Ao vencedor, as batatas!’, palavra de ordem com que o filósofo pancada Quincas Borba sintetizaria – noutro romance machadiano (Quincas Borba) – a essência de sua doutrina ‘humanitista’”[7]. Frase que, segundo Schwarz, possivelmente seja tradução da expressão “survival of the fittest”, de Spencer.
Schwarz considera que “(...) Privadas do contexto responsável que lhes viabiliza a pretensão à objetividade, a filosofia e as teorias científicas fazem figura de espetáculo exterior, versão esvaziada de um processo que noutra parte ocorre a sério.”[8]. Por isso mesmo, Machado de Assis percebeu a insuficiência do Positivismo em terras brasileiras, o que o fez parodiar a filosofia comtiana, na forma do Humanitismo borbista, que aparece tanto em Memórias Póstumas de Brás Cubas, quanto em Quincas Borba.
Ao fim da trama de Memórias Póstumas, sabe-se que Quincas Borba enlouquecera e morrera na casa de Brás Cubas, pouco tempo depois este também falecera. Já em Quincas Borba, o filósofo, ao início do enredo, está em Barbacena aos cuidados do enfermeiro Rubião, seu discípulo filosófico e seu futuro herdeiro pecuniário.
Rubião é construído como personagem, na forma do: “Herdeiro do Humanitismo de Quincas Borba, tende para um estranho universalismo filosófico e para uma reflexão sobre o mundo que inverte a lógica das categorias fixas de bem/mal, virtude/vício (“Ao Vencedor, as batatas!”), numa linha de experimentação estranha à epopeia e à tragédia antigas, (...), sob a influência da sátira da menipéia, cujas raízes mergulham diretamente no folclore carnavalesco.”[9]
Rubião, assim como seu mestre, “tem aspectos morais e psíquicos anormais, tem desdobramento de personalidade, imaginação desenfreada, sonhos incomuns, paixões que o levam à loucura.”[10]
Quincas Borba, ainda nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, “aparece mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia.”[11]. A “receita moral”, segundo a estudiosa Dirce Côrtes Riedel, é uma imagem que o filósofo usa para definir sua filosofia, tem em si a coexistência dos contrários: negação-afirmação. Riedel afirma ainda que
É (a) negação de dogmas através de novos dogmas, novas receitas, novo sistema. A abastança devolve ao mineiro a sua antiga dignidade, mas a coexistência dos contrários é salvaguardada no comentário de Brás Cubas, quando o antigo mendigo lhe devolve o relógio roubado: Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto: há coisas que não se podem reaver integralmente...[12]

É panfletário o sistema filosófico de Quincas Borba, segundo Riedel, o discurso do mineiro é uma mistura de idealismo e humor, que desvela as glórias nacionais, numa época de conquistas científicas e políticas decisivas na evolução do Brasil. A fala da personagem está engajada no cotidiano “é uma espécie de enciclopédia às avessas do seu tempo, em que o humor abre dúbia polêmica com as tendências da filosofia, da religião, da ciência contemporâneas.”[13]
Para Riedel, o filósofo denomina a sua doutrina com uma “metáfora paródica” do Positivismo de Comte – Humanitismo, de “Humanitas”, princípio das coisas, “também uma denominação paródica da ‘Humanidade’, origem e síntese no sistema filosófico genérico positivista, base da Religião da Humanidade.” O filósofo Quincas Borba também “inaugura uma nova era, paródia da nova fase da evolução do pensamento humano – a filosofia positiva.”[14]
A paródia é ambivalente, segundo Riedel
Na paródia, a palavra tem uma orientação dupla. (...) O texto de Machado é quase sempre baseado na paródia. No entanto, o narrador, sempre ambíguo, parodia ao mesmo tempo que negaceia o conflito das duas vozes. Fica, ambivalentemente, entre a paródia e a estilização, sem se pronunciar nem por uma nem por outra. (...) Parodiam-se tipos sociais e caracteres individuais, históricos ou literários; personagens parodiam personagens; personagens se parodiam a si próprios; operam-se paródias de paródias; sistemas parodiam sistemas; doutrinas parodiam doutrinas...[15] 

Exemplo clássico da paródia machadiana ao Positivismo, é quando em Quincas Borba, o filósofo explica para seu enfermeiro, Rubião, a teoria do Humanitismo, por meio da fábula das duas tribos:
- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrerm de inanição. A paz nesse caso é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todo os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. [16]

 Percebe-se, nesse trecho, a ironia típica de Machado de Assis, que lhe serve de recurso para parodiar o Positivismo, de Comte. Machado não acreditava nos postulados cientificistas, racionalistas e positivistas do Realismo-Naturalismo, onde acreditava-se que o mais forte sempre prevaleceria. Porém, recriava-os, de forma irônica e paródica, em seus romances. É o caso do cientificismo comtiano, o qual o escritor carioca recria, parodicamente, no trecho acima, formulando o Humanitismo, que tem como máxima: “Ao vencedor, as batatas!”, nesta fórmula está registrada a teoria do “mais forte” do Realismo-Naturalismo, só que Machado a ironiza e a parodia, ao invés de a glorificar.
Outro trecho que exemplifica o exposto acima: “Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver a água? Hás de lembrar-te que as bolhas se fazem e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma. Os indivíduos são as bolhas transitórias.”[17]. “Bolhas” é uma “metáfora-núcleo” de uma paródia do princípio de Lavoisier (na natureza nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma), segundo Riedel[18], um dos princípios que norteam a filosofia cientificista de Comte, segundo a qual só com a observação e a experiência, pode-se conhecer com exatidão as verdades constatadas. Riedel continua citando Machado de Assis
Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares: devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água. [19]

Rubião adentra, verdadeiramente, à filosofia de Humanitas, só quando penetra na loucura, parodiando o mestre, na superfície da linguagem, antes de enlouquecer, quando já é apaixonado por Sofia “sem o ser do ‘saber’”. Rubião torna-se metáfora completa do mestre, só na segunda fase da paródia – a da loucura – quando ama “Sofia”, a mulher e ama “sofia”, a sabedoria, passando, segundo Riedel, “a ser amante e praticante da filo-sofia.”[20]. Pois, em relação ao filósofo Quincas Borba, “Sofia” é nome comum, que designa genericamente a sabedoria. Mas é a Rubião, o discípulo do teorizador de Humanitas, que deste herdou a fortuna e a doutrina, mas não o amor à filosofia.
Rubião quando olhava para Sofia, pensava em estrelas e outros substantivos celestes, “que ele chama os olhos de Sofia de ‘estrelas da terra.’”[21]. Rubião continua explicando a metáfora: “As estrelas são ainda menos lindas que os seus olhos, e afinal nem sei mesmo o que elas sejam; Deus, que as pôs tão alto, é porque não poderão ser vistas de perto, sem perder muito da sua formosura. Mas os seus olhos, não; estão aqui, ao pé de mim, grandes, luminosos, mais luminosos que o céu....”[22]
Rubião foi dominado por uma paixão romântica. Segundo Riedel, “o narrador, ao revelar o pedido que o exaltado personagem fez à amada – que fitasse o Cruzeiro, ele o fitaria também, e os pensamentos de ambos iriam achar-se ali juntos, íntimos, entre Deus e os homens – põe à mostra a ‘libertinagem’ não poética (não sublime) do olhar e dos gestos.”[23]
Riedel afirma ainda que
No capítulo L, a tessitura metafórica básica da narrativa é contraponto oferecido pela complacência de Palha, quando este, depois de empalidecer ao tomar conhecimento de que sua mulher ouvira uma declaração de amor, achou natural que as gentilezas da esposa chegassem a cativar um homem – e Rubião podia ser esse homem.... Mas, enfim, contanto que lhe ficassem os olhos, podiam ir até alguns raios deles. Não havia de ter ciúmes do nervo ótico...[24]

O caculismo  de Palha, interessado na fortuna de Rubião, faz aquele aconselhar à esposa, Sofia, que era preciso “não desaprovar nem aceitar a proposta”, pois convinha ao Palha conservar a amizade de Rubião, com fins de pôr as mãos em sua fortuna, como acaba ocorrendo ao cabo do romance.
Rubião, retoma a paixão obsessiva, condutor do seu delirante devaneio, ainda contemplando o Cruzeiro. “Oh! Se ela houvesse consentido em fitar o Cruzeiro! Outra teria sido a vida de ambos. (...) e Rubião quedou-se a mirá-la, a compor mil cenas lindas e namoradas, a viver do que podia ter sido.”[25]
    Para Riedel, “é esta mesma contemplação que faz ‘o nosso amigo’ passar de ambição de amores à ambição de prestígio social. O narrador vai construindo o processo de intensificação do delírio, que gradativamente conduz o personagem à loucura.”[26]. Riedel prossegue asserverando que
No capítulo CXCV, Rubião, no seu real imaginário, é imperador, realizando a fórmula do Humanitismo, que não realizara quando a falta do desvario não lhe permitia vencer a cândida ingenuidade matuta: Rubião, logo que chegou a Barbacena e começou a subir a rua que ora se chama de Tiradentes, exclamou parando: - Ao vencedor, as batatas! Tinha-as esquecido de todo, a forma e a alegoria. De repente, como se as sílabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguém que as pudesse entender, uniu-as, recompôs a fórmula e proferiu-a com a mesma ênfase daquele dia em que a tomou por lei da vida e da verdade.[27]

O narrador organiza, a partir do desvario de Rubião, o momento clarividente em que a loucura permite compreender a fórmula e a alegoria filosófica de Quincas Borba. Assim, mostra a realidade com a ironia do devaneio. A estudiosa, citando Machado de Assis, continua afirmando que
O imperador não se admirou de não ser recebido por uma multidão: - Talvez não saibam que cheguei, pensou Rubião. Os dois vagabundos – o imperador e o seu cão – vagaram sem destino. O estômago de Rubião, estômago de vagabundo, interrogava, exclamava, intimava, mas o delírio do poder vinha enganar a necessidade com os seus banquetes das Tulherias.[28]

A morte de Rubião, que ocorre no capítulo CC, é uma forma, para Riedel, de
negar, afirmando, e de afirmar, negando; é a negação-afirmação, no ‘real’ do romance, da solução dada pelo real imaginário. O narrador resolve, então, que Rubião morra, sem matar o seu sonho. Poucos dias depois morreu.... Não morreu súdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça – uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa. / - Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor.../ A cara ficou séria, porque a morte é séria; dois minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação.[29] 



À guisa de conclusão, vale verificar que o capítulo sexto, de Quincas Borba, contém o resumo didático do princípio do Humanitismo. Segundo Ronaldes de Melo e Souza:
A subordinação dos axiomas de conduta ao primado teórico do humanitismo transforma as persoanagens de Quincas Borba em protagonistas do processo de alienação da sociedade. (...). No mundo regido pela antrofagia social, não resta outra alternativa, senão comer ou ser comido. O alcance exegético do sistema filosófico do humanitismo não se limita à desconstrução satírica do positivismo e da doutrina naturalista, mas se distende na perspectiva mais ampla da representação dos atos regulados pela trama das relações humanas no regime social da exploração generalizada.[30]

Enfim, este ensaio procurou abordar alguns aspectos do Humanitismo, filosofia machadiana, que aparece em dois romances do escritor, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Filosofia criada pela personagem Quincas Borba; primeiramente, apresentada a Brás Cubas, em Memórias Póstumas; depois reapresentada, pelo próprio Quincas, em outro romance, só que agora tendo como discípulo, Rubião. Enfatizamos o caráter irônico e paródico da filosofia humanitista, mas não devemos esquecer que outras leituras são possíveis, como ficou indicada pela afirmação anterior, de Ronaldes de Melo e Souza. Ou seja, como todo clássico, e Machado de Assis é um clássico, múltiplas são as leituras de suas obras, pois elas têm um caráter universal, e que sempre possibilitarão (re) -leituras.”    








REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997.
---------, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 1997.
IZOLAN, Maurício Lemos. A letra e os vermes: O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2006.
RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora: O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do Capitalismo (Machado de Assis). São Paulo: Duas Cidades, 3. ed., 1998.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006.



[1] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997. p. 165.
[2] Idem, ibdem.
[3] IZOLAN, Maurício Lemos. A letra e os vermes: O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006. p. 75.
[4] SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo (Machado de Assis). São Paulo: Duas Cidades, 1998.
[5] Idem. p. 143.
[6] Idem. p. 155.
[7] Idem. p. 156.
[8] Idem. p. 158.
[9] RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora: O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979. p. 1-2.
[10] Idem, p. 2.
[11] Idem, p. 3.
[12] Idem, ibdem.
[13] Idem, p. 4.
[14] Idem, ibdem.
[15] Idem, p. 5.
[16] ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 1997. p. 8-9.
[17] Idem, p. 9.
[18] RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora: O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979. p. 7.
[19] Idem, ibdem.
[20] Idem, p. 127.
[21] Idem, p. 146.
[22] Idem, p. 147.
[23] Idem, p. 148.
[24] Idem, p. 149-150.
[25] Idem, p. 151.
[26] Idem, ibdem.
[27] Idem, p. 152.
[28] Idem, p. 152-153.
[29] Idem, p. 153-154.
[30] SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006. p. 125.